Não sei bem por onde começar. Desde a última vez que escrevi aqui, passaram-se quatro estações do ano inteiras, e talvez novamente a primeira delas, agora pela segunda vez. Foi um ciclo longo e conturbado e, na verdade, um relato minucioso seria estéril e entediante. Vou me esforçar, portanto, para tentar resumir e definir o que é o retorno da ave.

Abstrações são complexas. Começo, pois, com uma específica data: 23/09/17. Era um sábado de sol e saí muito cedo para ir ao haras, cerca de uma hora e meia de estrada da minha casa. Quando cheguei, tomei café, montei e fiz tudo exatamente como sempre fiz. Mas o cavalo, após cinco minutos de cavalgada, empinou sem maiores explicações, por uma, duas, três vezes. Nessa última, eu caí e, quando tentei levantar após rolar no chão, ele voltou e pisoteou minhas costas. Foram dez vértebras completamente fraturadas e mais de quatro meses praticamente imobilizada em uma cama.

Não vou me apegar a todo esse processo, que, na verdade, começou muito mal, com grave inadequação já no meu socorro. Esse específico problema, aliás, foi a causa do stress prós-traumático que vivenciei, diagnosticado por dois especialistas. E fica aqui a primeira nota: o acidente, em si, foi gravíssimo, mas o impacto psicológico mais relevante foi mesmo o que decorreu da desídia. Todos sabem o quão terrível é a sensação de abandono e solidão.

Com medicação e exercícios respiratórios, venci esse trauma ao longo dos meses e, mais uma vez, disse a mim mesma que, por mais que a irresponsabilidade de terceiros possa machucar, é possível dar a volta. É claro que tive todos os cuidados da minha família durante o período. Mas a minha cura interna, cuja dor estava encravada em acentuada mágoa e indignação, tive que dar conta por mim mesma. E fechei esse lamentável capítulo.

É intuitivo saber que, quando ocorre algo de relevante, há necessidade da cura em mais de um aspecto: o físico, o emocional, o espiritual. E, para recuperar-se por completo, é necessária uma força descomunal que nasce do imediato abandono da condição de vítima. Não me coloquei assim sequer por um segundo, tampouco nos seis dias que permaneci na semi UTI, em tratamento, recuperação e observação. Aprendi, a duras penas, e ao longo de décadas, que a vida simplesmente é como ela é. E o período que você gasta se lamentando representa enorme desperdício no seu processo de cura. Saiba que, por pior que algo tenha ocorrido, você não é vítima de nada, ao menos sob uma perspectiva maior de que a vida tem seus próprios mecanismos.

Fico feliz que esse acidente tenha ocorrido depois de já atingida essa maturidade, pois minha atitude positiva certamente acelerou em muito o processo. Deitada por meses a fio, ocupei-me o quanto pude, li, escrevi, estudei, fiz cursos, desenhei projetos e até descansei.

Foi uma fase para não esquecer. O amor chegou em mim sob formas e por pessoas absolutamente inesperadas. Eu tinha pouca mobilidade, mas não me preocupava com isso, pois meu coração foi inundado de afetos e de palavras de fé. Nunca fui muito religiosa. Mas renasci desse evento com outra visão.

Muitas coisas deixaram de ter relevância. E outras passaram a ter importância absoluta. Família, amigos e a minha paz passaram a ser os únicos aspectos realmente significativos.

Às vezes ainda sinto alguma dor. E, surpreendentemente, acho esse desconforto até um pouco nostálgico. Faz apenas dez meses do meu acidente, mas a pessoa que existia antes já não existe mais. Esse incômodo serve para me lembrar de todo o processo de transformação que vivi. E já quase não sinto saudades de nada do que se passou antes disso.

Não tive culpa da minha queda. Ela simplesmente aconteceu. E chego a ser grata a ela por tudo o que veio depois. Um pequeno acidente de percurso pode representar a sua salvação e o reinício de uma nova vida. Acredite. A sua felicidade se dá, na verdade, por cada um dos pequenos recomeços cotidianos, que nada mais são do que a oportunidade de renascer e de voltar à sua casa.

Ame a aceite o que acontece com você. Aproveite para olhar a si e aos outros com mais atenção. É possível que você veja pessoas muito diferentes depois de cada episódio.

As nuvens cinzentas sempre se dissipam e o sol sempre volta a brilhar. E as asas sempre se mostram mais fortes.

E é exatamente nesse momento mágico que a ave pode retornar.

horse

(foto extraída de Alpha Coders)

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