Mulheres com Asas

Bons Voos.

Tag: mulher (Página 1 de 3)

FEITO PLUMA

Tenho caminhado com certa dificuldade. Não falo sobre dificuldade mecânica, de locomoção, porque minhas pernas seguem fortes e vigorosas apesar de um insistente desconforto na panturrilha esquerda, para o qual houve até mesmo a indicação de um procedimento cirúrgico. Desde sempre minhas pernas têm sido o melhor do meu corpo, ainda que eu já tenha me submetido a cirurgias nos dois joelhos, a primeira aos dezenove anos e a segunda lá pelos trinta e sete. Mas, mesmo assim, elas nunca me deixaram na mão. Minhas pernas sempre me permitiram fazer o que eu bem entendesse. Com minhas pernas eu danço, corro, nado, mergulho, monto, faço trilhas e dirijo para qualquer lugar, sem receios ou incômodos. Não posso reclamar.

A caminhada difícil tem sido bem outra. É aquela caminhada da vida, aquela que nos obriga a seguir, mesmo quando você tem vontade de apenas parar e desistir. Em parte, os dias parecem longos e intermináveis. Há uma infindável lista de tarefas a cumprir, de problemas a resolver, de demandas a solucionar. Por outro lado, os dias voam ligeiros como aves de rapina. São rápidos, ágeis e rasantes. São eficientes em capturar as suas presas. Os dias consomem o tempo, a força, o ânimo, a juventude, o vigor. São predadores da nossa própria existência.

À noite, na hora de fechar a janela, eu sempre olho para o céu. Fico procurando por alguma estrela, que raramente vejo, porque as estrelas gostam mesmo é de se esconder por detrás das nuvens. As estrelas aqui na minha cidade são tímidas e fugidias. Dificilmente aparecem para lembrar o quanto o céu é infinito e o quanto elas podem ser lindas apesar de estarem tão distantes de nós. Então eu junto as cortinas e tento me alegrar com o fato de que em poucas horas o sol volta a brilhar.

Falar em brilho do sol nesse contexto é um pouco como figura de linguagem porque a maioria dos dias têm sido bastante cinzentos. Mas não tem problema. Acordar de manhã é sempre estimulante pois a gente, a cada dia, acredita que tudo por ser muito diferente. Mas sejamos honestos. Às vezes os dias podem mesmo ser incríveis, mas, no mais das vezes, os dias são apenas repetições do que foi ontem e ensaios para o que será amanhã. E por isso mesmo a caminhada da vida pode parecer assim, tão tediosa ou extenuante.

Fico pensando que a gente deveria ser feito pluma. Deveria não ter de se preocupar com nada e apenas se deixar levar. Imagine como seria belo sentir a leveza do corpo e da alma, esquecer a força da gravidade que nos afunda, e apenas deixar-se levar. Seria um mundo fluido, volátil, etéreo, incorpóreo. Mas é muito difícil conseguir flutuar. Quando as janelas do quarto se abrem a cada nova manhã, precisamos do peso do controle, da densidade da ação e da materialidade dos impulsos.

Nem mesmo uma ave plumada vive bem sem o dinamismo das suas asas. Ela pode flanar um pouquinho em sua inércia, mas depois de um tempo precisa retomar o ritmo compassado para continuar a equilibrar-se. Tampouco as aves escapam do realismo corpóreo deste universo.

Então ser como pluma é algo que você carrega somente nos seus sonhos, naquelas horas em que você apenas fecha os olhos e imagina a sensação de desapego, de desprendimento, de leveza. São aqueles instantes mágicos, mas fugidios, em que você acredita piamente que é capaz de flutuar. São momentos fugazes que não duram mais do que um piscar de olhos na velocidade das asas de um beija-flor.

Então você se lembra que é necessário fazer as asas vibrarem para manter-se vivo e não cair. Se observar bem, vai se recordar que também no céu é preciso estar atento para desviar dos picos das montanhas, para evitar os precipícios e para fugir das tempestades. A condição de inação não condiz com o mundo real.

Ser como a pluma é para quem já desistiu. Para quem se abandonou. Para quem deixou para trás a si mesmo. É difícil, eu sei. Em mesma sinto essa dor dentro de mim, porque às vezes tudo o que eu queria era entregar-me imóvel a uma rajada de vento. Mas é preciso acordar as suas asas a cada manhã e insistir com elas que devem permanecer em movimento. É preciso treinar-se. Liberdade não é exatamente deixar-se levar. Liberdade é algo muito mais complicado. É ter a certeza de que é preciso esforçar-se para permanecer vivo, mas, ainda assim, amar esse esforço porque ele é sempre um desafio. Liberdade é devotar-se à vida e saber que, em parte, ela própria depende de você. Isso faz de você dono e senhor de si. E esse é o maior dom e poder que um ser alado pode experimentar: ter consciência de suas próprias asas e saber como as pode dominar.

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(extraído de Google imagens)

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DE VOLTA AO CASTELO ENCANTADO

Era uma vez uma menina. Ela não era uma princesa. Ela era uma menina comum. Esta menina carregava dentro de si todos os sonhos do mundo. Nestes sonhos, a menina habitava um lindo castelo, rodeado de verdejantes jardins com fontes de águas puras e cristalinas, onde, ao longe, podia-se ouvir o som dos violinos. Passarinhos de todas as cores vinham visitá-la logo cedo em sua janela, convidando-a a correr por entre os bosques fartos e a dançar junto às borboletas azuis. A menina, então, todas as manhãs, levantava-se de sua cama cor-de-rosa, atravessava seu enorme quarto cor-de-rosa e abria as longas cortinas também cor-de-rosa para dar “bom dia” a cada um de seus pequeninos amigos. A família da menina era muito doce, meiga e generosa, mas, mesmo assim, a menina sentia-se muito só. E sentia-se assim não porque a família a negligenciasse, mas sim porque, por mais que se esforçassem, os membros desta família não conseguiam acessar e entender os sonhos desta menina. E por causa disto, então, ela aprendeu, desde muito cedo, que seus sonhos eram só seus e que eles eram capazes de fazê-la muito feliz.

A menina cresceu. Sem que percebesse o tempo passar, muitos dos seus sonhos se realizaram. É claro que ela jamais morou em um castelo. Neste ponto, portanto, nunca deixou de ser aquela menina comum. Em contrapartida, realizou outras tantas coisas, que, como num passe de mágica, quando caiu em si já havia se feito inteira como mulher.

Preencheu sua vida com tarefas, atividades, deveres e ocupações. E nem tudo foi ruim. A par de uma agenda cheia, houve também um tanto de prazer. Fizeram parte desta trajetória casamento, filho, viagens, hobbies, amigos, conquistas materiais, realizações profissionais e reconhecimento. Tudo aconteceu como tinha de acontecer.

Foi então quando, do nada, nestes estalos que simplesmente vêm à mente, a menina percebeu que não era mais uma princesa, mas, sim, que agora havia se transformado em uma mulher e que se achava coroada como a rainha de si mesma, forte, independente e realizada. Neste momento, ficou com um pouco de medo de si. Sentiu temor por tudo quanto a força e o poder podem representar porque eles são capazes de afastar as pessoas daqueles primeiros sonhos da infância, fechando definitivamente os portões daquele castelo.

Esta sensação não foi nada confortável para aquela menina, hoje mulher. Sem maiores explicações, ela passou a lembrar-se dos tempos em que era apenas uma criança e que tinha em si todos os sonhos do mundo. Agora, tudo parecia tão realizado, perfeito e concreto, e, paradoxalmente, tão distante daquele estado de desejo que somente as meninas sonhadoras sabem conhecer.

E, num piscar de olhos, olhos agora marejados, tudo o que a menina ora desejava era estar lá atrás de novo, em seu castelo encantado, esperando a hora de correr com as borboletas azuis.

A vida é engraçada. Busca-se muito e quando se alcança, a gente tem a sensação de que o desejar e que o sonhar são sentimentos mais reais do que o conseguir.

A menina viu-se prisioneira de si e do ciclo da vida, pois bem sabia que não podia caminhar para trás. E, além disso, ela teve de admitir que sequer se lembrava onde havia guardado a chave dos portões do castelo.

Foi um grande e desgastante trabalho desvencilhar-se desta armadilha. Sabia que não podia jogar tudo para o alto para viver um delírio infantil. Por outro lado, era frustrante saber que não mais podia experimentar aquelas sensações das frescas manhãs.

A menina recusou-se a permanecer naquele cativeiro. Haveria de existir uma saída para esse complicado dilema. Foi quando ela, então, decidiu escarafunchar todas as gavetas da sua existência até encontrar seu tesouro precioso. Ela sabia que se descobrisse algo que houvesse deixado para trás poderia ainda retornar a aquele castelo com a chave certa capaz de abrir seu coração. Repassou em sua mente tudo o que desejou e sonhou ao longo de sua jornada. E lembrou-se, então, que algo havia sido abandonado. Foi um sonho interrompido. Por circunstâncias da vida e antes que a cortina se fechasse, a menina deixara de dançar nas pontas de seus pés, em vestidos de tule cor-de-rosa e coroas prateadas.

Ela havia encontrado o segredo. O mistério para sua felicidade finalmente estava desvendado. Com a coragem necessária, ela poderia obter a chave daqueles portões. Preparou-se então para o grande dia em que poderia novamente calçar as suas sapatilhas de cetim. Chorou de dor e de emoção quando as luzes do palco se acenderam e depois se apagaram. O tempo havia passado mas era como se o próprio tempo não existisse. A tristeza foi-se embora. O medo acabou. Os pássaros cantaram. Os jardins floriram. As janelas e os portões finalmente se abriram. E a música, antes ouvida à distância, agora estava dentro dela para sempre e nunca mais pararia de tocar.

E a menina, então, jurou a si mesma que, enquanto vivesse, seria fiel à sua verdade e à sua essência. Jurou que cumpriria todos os seus sonhos. Jurou que nunca mais abandonaria a si. Jurou que sempre voltaria ao castelo. Jurou que desafiaria o tempo e que renasceria na própria eternidade.

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Crédito da Foto: Pinterest

 

 

 

 

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O VOO MAIS BELO QUE EXISTE

Falar de relacionamentos é sempre muito complicado. E mais difícil ainda é falar de não-relacionamentos, porque se tem uma coisa que ainda dói profundamente no coração humano é a solidão aliada à sensação do abandono e do vazio. Não importa como tudo começou ou como tudo acabou. A grande maioria de nós, nessas circunstâncias, experimenta dores muito fortes no peito e na alma.

A intensidade e a duração de uma dor podem variar de pessoa para pessoa. Por razões não enquadráveis em um plano lógico e esperado, há pessoas que em curtíssimo tempo recuperam-se do mal-estar e outras tantas que vivenciam um certo sofrimento ou frustração pelo resto de suas vidas.

Também é possível notar que as reações e condutas perante essas dores são muito pessoais e individualizadas. Há pessoas que, desesperadamente, lutam por um novo amor, na tentativa da reconstrução de um modelo, agora com o acréscimo do alívio que uma faísca de vingança pode temporariamente trazer. Já outras, desistem de trilhar pelo caminho linear da vida e embarcam na loucura de noites e dias sem fim, para repetir, inúmeras vezes, antigas sensações de prazer de uma determinada situação que não pode mais voltar. Por fim, há pessoas que se refugiam na dedicação ao trabalho, ao estudo e ao desenvolvimento pessoal, com o intuito de superaram aquela parte da vida que não deu certo mediante o esforço de serem bem sucedidas nas outras áreas da nossa existência.

É evidente que não há um modelo ou paradigma que seja melhor ou pior. Mas há uma circunstância que me incomoda demais. Ao longo da vida, encontrei centenas de mulheres que me disseram que não se importavam em ter ou não um relacionamento, de ter ou não um filho, de viver ou não uma vida a dois. Destas tantas, algumas me pareceram realmente sinceras, mas devo confessar que foi uma insignificante minoria. Quanto a todas as demais, não pretenderam, em absoluto, mentir para mim ou para ninguém. Mas ficou claro e evidente o esforço que tais mulheres faziam para tentarem convencer a si próprias de que estavam felizes assim. E então, para ratificar as suas próprias conclusões, sempre apresentavam como prova de seu correto posicionamento relatos de casamentos desfeitos, abusos físicos e morais, traições e abandonos. Nunca essas mulheres se referiram aos relacionamentos que, de uma forma ou de outra, eram bem sucedidos.

Respeito todas essas mulheres, mas acho isso um pouco ruim. Não por mim, evidentemente, mas por elas próprias que, nas entrelinhas, revelam o quanto se debelam entre um modelo psicológico e social estabelecido e a sua própria realidade pessoal.

Estive certa vez em consulta com uma terapeuta bastante experiente. Ela pediu, na apresentação, que eu falasse sobre mim. E confesso que foi facílimo relatar todo um histórico de sucesso, de reerguimento profissional, intelectual, financeiro e social. Em meu íntimo, creio que até mesmo minimizei os esforços que precisei fazer para chegar aonde cheguei. Mas não porque eu quisesse me gabar e, sim, porque havia questões que me pareciam infinitamente mais complexas. Quando terminei minha própria biografia, ela então me perguntou porque eu estava ali. Nesta hora, eu apenas baixei meus olhos e disse a ela que tinha vergonha de estar em sua frente porque meu único problema era que eu me sentia sozinha demais. Acrescentei a ela que sabia de pessoas que tinham problemas familiares horríveis, doenças incuráveis, limitações de toda espécie e que haviam vivenciado perdas irrecuperáveis. E esclareci que me parecia que estar ali por conta da mera solidão era um pouco fútil e desarrazoado. Naquele momento, não chorei de tristeza, mas, sim, de vergonha.

Foi quando então esta médica, muito gentil e compassiva, me contou uma história surpreendente. Ela havia trabalhado e estudado sobre os efeitos psicológicos da guerra, sobretudo em mulheres. Contou-me, então, que, ao início de seu trabalho, preparou-se para ouvir relatos de maldades e de abusos infinitos, além de perdas de laços familiares, principalmente com relação a seus próprios filhos. Avançando sobre o tema, porém, ela viu-se supreendida com o fato de que muitas mulheres, de forma clara e consciente, trouxeram a esse mesmo patamar de importância a frustração de jamais terem constituído suas próprias famílias e de não se sentirem amadas. Esta competente profissional, com isso, buscou acalmar-me e esclarecer-me que o sentir-se só não era uma leviandade ou uma futilidade. Antes, era algo relevante a ser validado.

Este episódio mudou minha vida. Na verdade, representou uma imensa libertação, porque, até então, eu me via obrigada a sentir-me feliz e satisfeita e, consequentemente, desautorizada de me sentir triste e de chorar.

Saiba então, minha amiga querida, que, se há algo parecido em você, todos esses sentimentos são válidos e devem ser respeitados por todos, incluindo você mesma. Não se esconda atrás da sombra da negação e nem na penumbra da sublimação. É claro que você deverá buscar sua própria felicidade, do jeito que der, mas nunca partindo de algo que não se mostre como absolutamente autêntico e verdadeiro.

Para aprender algo, é preciso conhecer a si mesma e reconhecer-se no estágio em que efetivamente estiver. Fazendo isso, você poderá ir avançando, com consciência e coerência, até alcançar a próxima etapa. Não é possível enganar-se eternamente.

Você merece, obviamente, buscar a validação de seus sonhos e das suas realizações. Mas, para isso, você deverá percorrer cada etapa até conseguir voar corretamente. E não se faz isto de uma hora para outra. É preciso tempo, esforço e dedicação. É preciso analisar, com sinceridade, o que há dentro de você e onde estão as suas dores. E um dia, quando menos esperar, você estará voando o voo mais belo que existe. Um voo conseguido com suas próprias asas e com seus olhos atentos. Um voo sem enganos. Um voo de integridade e da sua própria verdade.

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Foto: Emily Soto

 

 

 

 

 

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AS RAZÕES QUE NINGUÉM VÊ

Muitas pessoas ficam admiradas quando comento que viajo sozinha e consideram isto um ato de coragem da minha parte. Outras tantas, porém, olham-me um pouco intrigadas, o que me permite perceber que, nos esconderijos de suas mentes, estão investigando as razões pelas quais isso acontece. Quando noto esta inquietação, trato logo de explicar e, em questão de segundos, aquilo que parecia um mistério insondável desmistifica-se, pois, na realidade, não há segredo nenhum a ser desvendado.

Meu primeiro voo solo aconteceu em 1996, ano seguinte ao do meu divórcio, durante o período das minhas férias, que começariam logo após o Natal. Como eu pretendia ir ao Canadá, é óbvio que não encontrei nenhuma alma que se dispusesse a viajar comigo para enfrentar o frio de cerca de -30 graus Celsius. É claro que fiquei um pouco temerosa, mas fui, ao estilo sem lenço e sem documento, com um mapa na mão, muitos casacos na mala e nenhuma reserva de hotel. E ali fiquei 35 dias, período em que tive a oportunidade de aprender muitas coisas sobre a vida e sobre os seres humanos.

A primeira grande lição que tive foi a de que há pessoas generosas e solícitas no mundo. Além disso, existe uma empatia natural dos demais turistas quanto aos viajantes solitários, de modo que você só ficará completamente sozinha se for uma pessoa socialmente inviável.

Em segundo lugar, quando você começa a conversar com desconhecidos, estes tendem a remover seus filtros e máscaras, o que permite aferir que suas vidas não são necessariamente melhores do que a sua. Não existe qualquer razão, portanto, para você sentir-se inferiorizada sob nenhum aspecto.

Por fim, não sei se isso é bom ou ruim, mas a verdade é que as pessoas sempre estão ocupadas demais com suas próprias questões para se incomodarem com o fato de que você esteja viajando sozinha ou acompanhada. Isto não faz a menor diferença na vida delas.

Compreendendo, assim, estas três regrinhas de ouro, afastei qualquer sentimento de vergonha, constrangimento ou inadequação, tanto que, após esta primeira experiência, viajei sozinha dezenas de vezes, em circunstâncias muito variadas.

Para finalizar, quero deixar claro que nem sempre viajo sozinha. Evidentemente, quando possível, viajo com meus pais, com meu filho, com meus amigos e, quando estou em algum relacionamento, com meu parceiro. A diferença é que, quando não há ninguém disponível por falta de tempo, de dinheiro, de vontade ou de interesses coincidentes, sigo sozinha da mesma maneira.

Aprendi, com o tempo, a não desperdiçar aquilo que a vida oferece como possível naquele momento. Sendo assim, aproveitar a oportunidade é, talvez, uma resposta única para tantas e tantas perguntas. Sem nenhum mistério. Sem nenhum segredo.

(Texto originariamente publicado em 04/01/12. Foto: Pinterest).

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O QUINTAL DA MINHA CASA

Como moradora da capital paulista, sinto-me privilegiada em poder viajar, uma ou duas vezes por mês, para estar em contato com a exuberante natureza da Mata Atlântica. Meu refúgio fica no litoral norte do Estado, no Município de São Sebastião. A casa é amarela, possui janelas de madeira e a trilha sonora fica por conta dos pássaros e do pica-pau que mora em uma das palmeiras. A animação está a cargo das enormes borboletas azuis que teimam em fazer arrelia em todo o entorno. Se um dia você vier me visitar, será recebido por mim, por minha cachorrinha dálmata e pelo Buda que repousa em meio às orquídeas, no jardim da frente. Mas o ponto alto da minha casa é o quintal. Ele se chama “Praia de Camburizinho” e fica a uma distância de aproximados três quilômetros da minha morada. E é bem ali que passo as manhãs e tardes de sol.

A praia é pequena, tem pouco mais de 300 metros de extensão. O mar é azul e cristalino e a areia é bem branquinha. Nas duas extremidades, há pedras e vegetação nativa, sendo que, no lado direito, está o riozinho que você pode facilmente atravessar para chegar à Praia de Cambury. As duas praias são irmãs, mas não são gêmeas. Enquanto Cambury é bastante frequentada pela moçada e por surfistas, Camburizinho normalmente é muito tranquila e sem nenhuma agitação. A praia tem dois pórticos de entrada que saem da Estrada do Cambury. Se você resolver se acomodar perto de qualquer deles, encontrará várias barracas de bebidas e de petiscos. E, a não se que a praia esteja excepcionalmente lotada, você sempre conseguirá com seus donos um guarda-sol e as cadeiras que precisar. Se você preferir, porém, ter a experência de uma praia praticamente deserta, é só seguir andando para o lado esquerdo e ali esticar sua canga.

Na Estrada do Cambury, na extensão que acompanha a praia, você encontra alguns restaurantes, pousadas, um supermercado, lojas de variedades e boutiques. Se você estiver por lá, vale experimentar uma das saladas e pelo menos um dos doces do Restaurante Framboesa, da simpática Ceres. Não deixe também de visitar o Villa Bebek Hotel, onde você poderá degustar uma deliciosa caipirinha de frutas em um ambiente tipicamente  balinês. Por fim,  entre outras tantas dicas que eu poderia deixar aqui, recomendo que você vá ao Pura Bar. O Pura é para poucos e bons, mas não pelo preço e, sim, por seu charme exclusivo. Ele fica escondido no canto esquerdo da praia e o acesso é pela própria areia. Para sinalizar que o bar está aberto, seu proprietário, o Marcelo, coloca um guarda-sol neon na areia, que é visível da outra ponta da praia. Pronto. É só seguir até lá, subir as escadinhas esculpidas na pedra e deliciar-se com a melhor vista de Camburizinho, ao som de música brasileira de vitrola, como ele faz questão de frisar.

A Praia de Camburizinho tem muitos outros encantos secretos, que vou deixar para você desvendar sozinha. Sendo assim, mesmo que você não tenha tempo para ir até minha casa, não deixe de visitar este meu quintal.  O arquiteto e o paisagista superaram-se na elaboração e execução deste projeto.

(Texto originariamente publicado em 05/01/12. Foto: Amber Bauerle).

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O CARROSSEL

Às vezes a vida parece um faz-de-conta enfeitado e colorido. Você vai à bilheteria, compra seu ticket e, deslumbrada, dirige-se ao carrossel. Já de longe você escuta a música, as risadas e um pouco do barulho enferrujado da máquina. Mas quem se importa? É ali mesmo que você decide embarcar. Os cavalinhos são lindos, galopam em perfeita harmonia, e sobem e descem com a precisão da dança da natureza. Há uma longa fila até chegar a sua vez. Mas vale a pena esperar. O dia está frio, mas não chove. Ao contrário, faz um enorme sol amarelo que ilumina aquele brinquedo tal qual um holofote. Além disso, há milhares de luzinhas piscantes em cada um dos mastros. O dossel é dourado e grandioso. O maquinista usa um quepe azul. E agora é a hora da sua diversão. Quem se incomoda com a idade? Há pessoas de todos os tipos esperando a sua vez de brincar. E então você pensa: “por que não?”. E sobe num cavalinho amarelo.
O motor é acionado e você começa a girar, girar… As crianças gritam de alegria e algumas delas carregam um algodão doce cor de rosa na mão. É claro que o brinquedo é lindo. De repente você se inunda com a sensação de fantasia que não sentia desde os oito anos de idade. Na sua frente, talvez passe um filme inteiro da sua vida, mostrando tudo aquilo que aconteceu desde então. Quem já não se sentiu assim?
As lembranças são um sopro de alegria e nos reposicionam ante a realidade. Somos capazes de lembrar das tristezas, mas, miraculosamente, voltamo-nos mesmo para uma sensação de felicidade. A gente começa a pensar naquela época em que parecia não haver problemas e que a parte mais difícil da vida era fazer a lição de casa.
Mas não é assim. Já naqueles tempos, havia dificuldades. E muitas, se você considerar a pouca experiência que você tinha. Não acho que mudou tanto assim. As adversidades vão se alterando na medida do seu crescimento e, de uma certa forma, tudo vai mesmo se tornando mais fácil.
Mas há uma diferença. Hoje não há mais como viver o faz-de-conta. E a vida não é um parque de diversões.
Por alguns minutos, pode parecer inebriante girar nas costas daqueles cavalinhos de madeira, estáticos e inanimados. Mas nossa existência clama mesmo pelo realismo, pelo dinamismo e pela capacidade de realizar. E isto não é necessariamente ruim. Para nosso próprio bem, é bom que saibamos a que viemos e o que nos define neste mundo. Cada uma de nós é tão diferente e complexa, que reduzir os nossos dias ao giro de um carrossel certamente não satisfaz a alma. Ninguém sabe ao certo o que é a alma. Poetas de toda a parte do mundo procuraram defini-la, mas na verdade cada uma de nós tem um conceito muito próprio. Talvez esse conceito não seja racional, mas sensorial. Mas a certeza de saber o que você deve fazer e o reconhecimento daquilo que faz sentido são capazes de satisfazê-la. Você não vê sua própria alma, mas sabe quando ela sorri em sua completude.
No filme da vida, a gente se pergunta o que fez até então. E de repente a alma começa a despertar, satisfeita, quando você assume a consciência de que deu o melhor de si em cada momento. Neste instante, a alma brilha porque sua vida não foi um giro inútil, contemplativo, passivo, mecânico e repetitivo.
O carrossel agora parou e é hora de retornar à realidade. Os medos são sempre tão relevantes. De tudo que a gente sente, parece que o medo é o sentimento que tem maior poder sobre nós. Às vezes preferimos mesmo nos entregar aos rodopios seguros, aos passeios previsíveis, aos percursos conhecidos. E nessas horas a alma chora porque sabe que podemos muito mais do que isso e que viver como um mero passageiro não nos levará a lugar nenhum.
Temos pés, mãos e asas. Podemos fazer muito mais do que simplesmente nos agarrarmos às hastes que cravam aqueles cavalinhos. Não somos pégasos, é verdade. E também não somos aves, não temos asas literais. Mas podemos ir aonde queremos. E não falo sobre atravessar os céus e os oceanos, porque muitas vezes isso é mesmo difícil. Falo, isso sim, de transformar a sua alma em um espaço onde caiba o mundo inteiro e onde não haja limites para a vontade de realizar.
É quase noite e o parque já está fechando. Vamos embora. Em casa pensamos melhor sobre isso. De toda forma, lembre-se: nunca será tarde para decidir como fazer a sua alma se iluminar e brilhar faiscante no meio do jardim.  Como um imponente carrossel.

(Texto originariamente publicado em 03/07/15. Foto: Darya).

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O CRISTAL DESPEDAÇADO

Quando eu era ainda muito pequena, alguém me ensinou o que era um prisma e como ele funcionava. Era um prisma rudimentar, é certo. Mas bastava eu colocar aquele pedaço de vidro sob o sol para ganhar o presente mais lindo da minha vida: uma refinada explosão de cores refletindo por todos os lados. Era como mágica. Era como trazer o arco-íris para dentro de casa, a qualquer hora do dia, em qualquer dia da semana. Quem disse que eu precisava esperar a conjunção sol-chuva para ser muito feliz?

Naquela mesma época eu ganhei um caleidoscópio de presente. E minha vida, que já era boa, agora me parecia completa. A festa de tons, de imagens e de brilhos fazia com que cada nova manhã valesse muito a pena. Meu maravilhoso brinquedo proporcionava o ápice da beleza logo ali, ao alcance dos meus olhos e das minhas mãos. O tempo parecia parar. O silêncio ecoava por toda parte. Todas as histórias do mundo se reduziam a um cenário encantado de belas imagens e de paz.

Até que um dia tudo mudou. Não me lembro bem como foi, mas, devido a uma queda, meu adorado cristal se partiu. Aquele pedaço de vidro que outrora me trouxera tamanha felicidade havia agora se transformado em milhares de cacos inúteis. E o resultado disso foi que eu nunca mais pude ter o meu próprio arco-íris. De repente, o mundo havia se transformado em um filme em preto e branco. Agora tudo o que me restava era esperar a rara garoa nos dias ensolarados. Ou o improvável sol amarelo nos dias de tempestades. A felicidade já não dependia de mim. Nunca mais eu senti que ela estivesse sob meu controle e sob as minhas mãos.

Desafortunadamente, o caleidoscópio desapareceu na mesma época. Não sei se ele se perdeu, ou foi furtado, ou foi parar no fundo de um baú qualquer. O fato é que nunca mais o vi. E nunca mais desfrutei, também, daquela maravilhosa orquestra silenciosa de formas harmônicas se movimentando ao rodopio do artefato. Que fase triste. A vida, por que razão seja, tirou de mim, em curto espaço de tempo, meus mais valiosos tesouros. Aqueles cristais encantados foram-se para sempre.

Uns anos depois, quando eu já era mocinha, ganhei um lindo pingente de cristal com areia colorida e logo tratei de atá-lo ao pescoço. É evidente que sua função era outra e que o adorno não me traria  de volta aquele mundo encantado de outrora. Mas ele tinha seu valor. Por alguns anos, minha gota de vidro funcionou como um verdadeiro talismã. E, nos momentos tristes, ela me alegrou porque eu podia me lembrar do cristal da minha infância. Esse berloque também sumiu do nada. Tenho a suspeita que o cordão simplesmente se rompeu. E, mais uma vez, precisei dizer adeus.

Quando adulta, continuei buscando recursos para alegrar o meu mundo. O problema é que, depois de algum tempo, eles simplesmente se esvaíam como fumaça, como se nunca tivessem estado ali.

São mistérios da vida. Desde sempre, presenciei desaparecimentos inexplicáveis e acabei compreendendo que a felicidade não tem vocação para permanecer. Fui surpreendida inúmeras vezes por circunstâncias mais do que improváveis. Estive às voltas com fatos incompreensíveis e com pessoas imprevisíveis. E na singeleza do meu querer, nunca entendi muito bem porque era tão difícil manter o que me encantava, o que era belo, o que me fazia feliz.

Um vidro, quando se parte, é capaz de cortar a carne. E senti essas dores muitas e muitas vezes, dentro e fora de mim. Não é figura de linguagem. É dor verdadeira, física, que pode até ser o resultado da somatização. Mas arde e queima de verdade, como faca encravada no coração.

O cristal é puro. E talvez nunca deixe de ser. Mas pode se despedaçar. E quando isso acontece o seu mundo colorido simplesmente vai embora e deixa para trás a ponta da navalha latejando no peito. A felicidade se esconde e sobra a missão da cura, do entendimento e da compreensão.

Eu não sei se vai ser sempre assim. Mas aprendi a varrer os cacos e a colocar o curativo. Dói por um tempo mas depois vai virando cicatriz. E durante esse período eu simplesmente repouso, mergulho no mundo dos sonhos e busco lá na infância as imagens perdidas do meu mundo mágico. Lembro do que foi a primeira felicidade e de como ela escapou de mim. Às vezes escorre uma lágrima, não de dó, de tristeza, ou de autopiedade. Desce uma lágrima de saudade de tempos longínquos que não podem voltar. Tempos em que um mero raio de sol era capaz de iluminar toda uma existência. Tempos em que a dança das cores não precisava de melodia para poder me encantar. Tempos em que o arco-íris morava em casa e brilhava forte dentro de mim. Tempos em que o cristal não parecia tão frágil e nem prestes a se quebrar. Tempos em que ainda não era necessário juntar os pedaços de nada, porque tudo parecia inteiro, perfeito, eterno.

(texto originariamente publicado em 20/05/14. Foto: Emily Soto)

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O PRINCÍPIO DOS VASOS NÃO COMUNICANTES

Houve uma época da minha vida em que tudo desmoronou. Incrivelmente, nada parecia funcionar e, olhando para um lado e para o outro, eu não conseguia enxergar nenhuma saída. A única coisa que eu sentia era uma pressão muito forte no meu peito. Meu corpo, para aliviar esta tensão, extravasava todo esse sentimento e toda essa dor na forma de lágrimas. Muitas e muitas lágrimas. Eu devo ter chorado por pelo menos umas quatro semanas ininterruptas. Minha única trégua era o trabalho. Nunca fiz questão de parecer forte aos outros, mas, magicamente, não chorei naquele ambiente.

Era necessário fazer alguma coisa. Mentira. Quem disse que nesse estado de coisas você consegue empreender uma avaliação crítica e elaborar uma estratégia? Eu não pensava em nada, em absolutamente nada. Até que em um certo dia me veio a imagem de um naufrágio. Não me lembro se foi um filme a que assisti, um sonho perturbador ou se foi a minha fértil imaginação. Mas a cena que se formou na minha mente era muito clara.

Eu sempre gostei de água. Quando criança, eu era um verdadeiro peixe. Então, naquele cenário, eu podia me ver muito serena agarrada a um pedaço de madeira em forma de tábua. O mar estava calmo e cálido. Não havia desconforto. Do meu lado direito, o navio afundava e eu não conseguia nem ver e nem ouvir qualquer pessoa. Eu estava literalmente sozinha no meio do oceano. As marolinhas batiam em mim e fiquei feliz por avistar uma ilha não muito longe dali. Era óbvio que eu poderia nadar até lá e esperar por socorro. Comecei a observar melhor a água e percebi que havia objetos flutuando. Muitos deles. Vi algumas latas fechadas de alimentos, garrafinhas de água e também muitas outras coisas inúteis ou imprestáveis. E nesse momento operou-se o milagre do salvamento e da salvação. Eu aprendi a recomeçar. Como eu precisaria nadar até a ilha, tive de escolher muito bem os objetos a serem recolhidos. Sem desespero, examinei um a um, avaliando o que poderia ser útil e o que poderia ser deixado para trás. Não foi difícil levar as coisas selecionadas com o auxílio da minha prancha. E poucos dias após permanecer sozinha na ilha, fui finalmente resgatada em perfeitas condições, físicas e mentais.

Este episódio mudou minha vida. Dele eu tirei a quase totalidade do pouco que sei. Foi com razão e com calma que eu me recuperei. Lembrei-de de novo da minha infância, precisamente da época da escola em que aprendi a fazer gráficos de barras. E desenhei um lindo gráfico na minha cabeça. Cada barrinha representava um setor da minha vida: saúde, filho, família, trabalho, vida social, vida afetiva e outras áreas significativas. E, desde então, todos os dias da minha vida, faço a avaliação do estado de cada um destes segmentos e dedico-me a melhorar a barra que apresenta o menor desempenho. Este método é eficaz e funciona muito bem porque uma barra nunca interfere na outra. Um problema aqui não pode estragar o que está bom por lá. Por que você jogaria um punhado de terra num copo de água cristalina e potável? Não é justo com os outros, com a vida e principalmente com você. Criei este princípio para mim. Lembra-se do princípio de física dos vasos comunicantes? Pois então. A premissa aqui é que este princípio nunca seja aplicado, em nenhuma situação e sem qualquer exceção.

Cada um é um, é verdade. E eu não sou filósofa ou sabida o suficiente para afirmar que o que funciona para mim vai funcionar para todos.

De todo modo, faço um convite a esta experiência. Nas situações extremas, permaneça calma, racional e selecione o que serve e o que não serve. Em seguida, repasse mentalmente seu gráfico pessoal e faça uma avaliação sincera de cada setor. Por fim, dedique-se ao mais vulnerável e lembre-se de preservar as áreas satisfatórias.

Isso é ciência? Não, é puro empirismo. Posso prometer que funciona? Não, por evidente. Mas se não se comprova sua eficiência, também não se demonstra sua inutilidade porque a ausência da prova do acerto não significa, necessariamente, a incorrência em erro. E quanto a isso tenho a mais absoluta certeza. A propósito desta assertiva, posso afirmar que se trata de postulado universal.

(Texto originariamente publicado em 06/12/13. Foto: Maja Topcagic).

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O QUE EU APRENDI ESSE ANO

O ano não acabou, é verdade. Mas faltam poucos dias. Se não para o fim do mundo, certamente para o final do ano propriamente dito. E é hora de começar a fazer o balanço dos meses, das semanas, dos dias, das horas, dos minutos, dos segundos.

Aprendi muito em cada uma destas frações existenciais do tempo.

A passagem dos meses me mostrou que o fortalecimento pode ser razoavelmente estável. Que nem sempre precisamos ter recaídas de tristeza e de desesperança. Que é possível navegar em águas calmas até o outro lado do oceano.

O transcurso das semanas me ensinou que é viável, sim, planejar e organizar-se. E, acima de tudo, realizar projetos em relativamente curtos períodos de tempo, de forma segura e responsável.

O transcorrer dos dias revelou que em pouquíssimo tempo se constroem amizades e sonhos. Não é necessário muito tempo para estabelecer laços e vislumbrar a concretização de um ideal.

O tique-taque das horas evidenciou que num breve piscar de olhos coisas impensáveis podem acontecer e mudar. Não temos controle sobre quase nada em nossas vidas. E, paradoxalmente, podemos ter integral controle sobre os nossos pensamentos.

O pulso dos minutos contados me contou sobre a possibilidade de cantar a alegria em momentos efêmeros e significativos. Num piscar de olhos, decide-se, avança-se, constrói-se. O relógio não para nunca, nem o físico, nem o biológico, nem o mental, nem o espiritual. O amor não precisa de quase nada para se manifestar. E nem também qualquer outro sentimento. Apreender a vida, reter a emoção, respirar o instante e ouvir o coração são ações que não se condicionam a nada que não seja você mesmo.

E os segundos… Ah! os segundos… São miraculosos, mágicos e reticentes. Explodem dentro de nós como faísca. E ainda assim contêm toda a eternidade. Em um segundo, é possível compreender o significado daquilo que demoramos vidas inteiras para perceber com clareza.

Os segundos são a nossa existência na forma de sua potencialidade máxima.

A dor que dói agora é sempre a mais vigorosa. O amor que se sente agora é sempre o mais poderoso.

Porque é apenas no agora que a mudança se manifesta e que a alma se transforma. O antes e o depois têm pouquíssima importância, pois é sempre no agora que você se emociona, vibra, acredita, sente, suporta, chora, sorri, sofre, recomeça.

É neste exato segundo que você compreende o resultado do ontem, do anteontem e de qualquer  momento do seu passado. E é neste exato segundo que se forma o amanhã, o depois de amanhã e qualquer partícula de um futuro seu.

Você acabou de envelhecer um átimo. E tudo o mais agora já é lembrança, memória, nostalgia. Ou apenas uma visão enevoada e incerta do próximo amanhecer. Porque somos seres livres mas somos também prisioneiros do ciclo interminável de uma inevitável sequência de agoras.

(Texto originariamente publicado em 18/12/12. Foto: Welcome Qatar).

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OS NOSSOS PRIMEIROS DESENHOS

Não posso falar por todas as mulheres do mundo. Falo apenas por mim. A cada ano, quando meu aniversário se aproxima, sinto um certo desconforto, interior e exterior. Não. Na realidade, o desconforto exterior é na verdade interior: é uma certa insatisfação com a imagem que você vê no espelho.

Muito anos se passaram desde que você fez o seu primeiro desenho com lápis de cor. E se você se lembrar direitinho, vai ver que aqueles primeiros rabiscos já eram uma espécie de projeto de vida.

Do quanto me recordo, meus primeiros rascunhos em menina eram casinhas com chaminés fumegantes e cerquinhas brancas repletas de flores. Sempre havia também uma lagoa com alguns patinhos amarelos. Vivi neste cenário um bom par de anos, até que a imagem mudou. Um pouco maior, meus desenhos agora eram estradas cujas bordas convergiam no infinito. Nunca tive uma veia artística muito acurada, mas relembrando aquelas imagens, constato que a perspectiva que eu imprimia era bastante realista: as árvores que ficavam à margem da rodovia iam diminuindo de tamanho em direção ao horizonte. Por fim, um pouco mais mocinha, passei a desenhar ilhas com coqueiros, circundadas de um lindo mar ondulado e com a presença soberana de um enorme sol com raios fulgurantes.

Depois que eu cresci, abandonei esta minha arte. Afundei-me nos livros, em atividades esportivas de mil espécies e nas sapatilhas de ballet. Eu já não tinha tempo para me dedicar a aqueles antigos projetos.

Quando finalmente me tornei adulta, percebi que minha vida não se parecia em nada com aquilo que eu havia idealizado. O casamento desfeito me conferiu a certeza definitiva de que eu jamais iria morar naquela casinha cor de rosa de cuja chaminé saía a fumaça de deliciosos bolinhos de chocolate.

Morar em uma ilha deserta no meio do oceano também estava fora de questão. Meu habitat, agora, era uma cidade cinzenta, poluída e cheia de gente. E, quanto à minha estradinha, também nunca foi muito fácil encontrá-la: meu dia-a-dia passou a ser a correria, os compromissos, o trânsito e a falta de tempo.

Pensando em termos pragmáticos, pode-se concluir que eu não era lá muito feliz. Mas, para ser justa comigo mesma, infeliz eu também nunca fui. Apenas me deixei guiar pelo curso da vida e sempre afirmei a mim mesma que minha vida não tinha sido nem melhor e nem pior do quanto imaginado: apenas diferente.

Um dia, porém, tudo mudou. Não foi um estalo,  um milagre ou uma visão. Foi apenas uma mudança. Tudo mudou como tem de mudar quando você está em processo de amadurecimento. Por acaso uma semente se parece com uma fruta madura?

Do nada, veio a percepção. A felicidade não é algo estático, idealizado e imutável. Tal como ocorreu em nossa infância, nossos desenhos também  continuaram se modificando vida afora. Sendo assim, não há razão para frustrar-se com a não realização daqueles primeiros sonhos. Contabilize quantos projetos e planos você pôs em prática desde então.

Na verdade, tal qual aquele barquinho no mar azul, em nossas vidas fizemos inúmeras correções de velas e lemes que, felizmente, nos conduziram até este ponto.

De igual maneira, a perspectiva da estrada também continua existindo. Será que desde aquela época já não pensávamos, inconscientemente, que aquela era a via da nossa  própria existência?

E a casinha, ah, a casinha. É claro que ela existe dentro de nós, pois é lá que guardamos todos os nossos tesouros mais preciosos.

Pode parecer uma bobagem, mas foi uma descoberta e tanto. Porque se os desenhos não eram mais os mesmos, também não eram lá tão diferentes. A matéria-prima pode ter mudado, assim como as cores dos papéis e das canetas. Isto é fato inexorável.

Mas é também inquestionável que é a mesma mão que ainda segura os pincéis e os lápis de cor. Porque no fundo, embora tenhamos de nos submeter ao implacável passar do tempo, sabemos que somos as donas de  nossos cadernos e de nossas representações. A quem eu, humildemente, poderia chamaria de sonhos.

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(Texto originariamente publicado em 27/11/12. Foto: Emily Soto).

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