Mulheres com Asas

Bons Voos.

Tag: infância

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O CRISTAL DESPEDAÇADO

Quando eu era ainda muito pequena, alguém me ensinou o que era um prisma e como ele funcionava. Era um prisma rudimentar, é certo. Mas bastava eu colocar aquele pedaço de vidro sob o sol para ganhar o presente mais lindo da minha vida: uma refinada explosão de cores refletindo por todos os lados. Era como mágica. Era como trazer o arco-íris para dentro de casa, a qualquer hora do dia, em qualquer dia da semana. Quem disse que eu precisava esperar a conjunção sol-chuva para ser muito feliz?

Naquela mesma época eu ganhei um caleidoscópio de presente. E minha vida, que já era boa, agora me parecia completa. A festa de tons, de imagens e de brilhos fazia com que cada nova manhã valesse muito a pena. Meu maravilhoso brinquedo proporcionava o ápice da beleza logo ali, ao alcance dos meus olhos e das minhas mãos. O tempo parecia parar. O silêncio ecoava por toda parte. Todas as histórias do mundo se reduziam a um cenário encantado de belas imagens e de paz.

Até que um dia tudo mudou. Não me lembro bem como foi, mas, devido a uma queda, meu adorado cristal se partiu. Aquele pedaço de vidro que outrora me trouxera tamanha felicidade havia agora se transformado em milhares de cacos inúteis. E o resultado disso foi que eu nunca mais pude ter o meu próprio arco-íris. De repente, o mundo havia se transformado em um filme em preto e branco. Agora tudo o que me restava era esperar a rara garoa nos dias ensolarados. Ou o improvável sol amarelo nos dias de tempestades. A felicidade já não dependia de mim. Nunca mais eu senti que ela estivesse sob meu controle e sob as minhas mãos.

Desafortunadamente, o caleidoscópio desapareceu na mesma época. Não sei se ele se perdeu, ou foi furtado, ou foi parar no fundo de um baú qualquer. O fato é que nunca mais o vi. E nunca mais desfrutei, também, daquela maravilhosa orquestra silenciosa de formas harmônicas se movimentando ao rodopio do artefato. Que fase triste. A vida, por que razão seja, tirou de mim, em curto espaço de tempo, meus mais valiosos tesouros. Aqueles cristais encantados foram-se para sempre.

Uns anos depois, quando eu já era mocinha, ganhei um lindo pingente de cristal com areia colorida e logo tratei de atá-lo ao pescoço. É evidente que sua função era outra e que o adorno não me traria  de volta aquele mundo encantado de outrora. Mas ele tinha seu valor. Por alguns anos, minha gota de vidro funcionou como um verdadeiro talismã. E, nos momentos tristes, ela me alegrou porque eu podia me lembrar do cristal da minha infância. Esse berloque também sumiu do nada. Tenho a suspeita que o cordão simplesmente se rompeu. E, mais uma vez, precisei dizer adeus.

Quando adulta, continuei buscando recursos para alegrar o meu mundo. O problema é que, depois de algum tempo, eles simplesmente se esvaíam como fumaça, como se nunca tivessem estado ali.

São mistérios da vida. Desde sempre, presenciei desaparecimentos inexplicáveis e acabei compreendendo que a felicidade não tem vocação para permanecer. Fui surpreendida inúmeras vezes por circunstâncias mais do que improváveis. Estive às voltas com fatos incompreensíveis e com pessoas imprevisíveis. E na singeleza do meu querer, nunca entendi muito bem porque era tão difícil manter o que me encantava, o que era belo, o que me fazia feliz.

Um vidro, quando se parte, é capaz de cortar a carne. E senti essas dores muitas e muitas vezes, dentro e fora de mim. Não é figura de linguagem. É dor verdadeira, física, que pode até ser o resultado da somatização. Mas arde e queima de verdade, como faca encravada no coração.

O cristal é puro. E talvez nunca deixe de ser. Mas pode se despedaçar. E quando isso acontece o seu mundo colorido simplesmente vai embora e deixa para trás a ponta da navalha latejando no peito. A felicidade se esconde e sobra a missão da cura, do entendimento e da compreensão.

Eu não sei se vai ser sempre assim. Mas aprendi a varrer os cacos e a colocar o curativo. Dói por um tempo mas depois vai virando cicatriz. E durante esse período eu simplesmente repouso, mergulho no mundo dos sonhos e busco lá na infância as imagens perdidas do meu mundo mágico. Lembro do que foi a primeira felicidade e de como ela escapou de mim. Às vezes escorre uma lágrima, não de dó, de tristeza, ou de autopiedade. Desce uma lágrima de saudade de tempos longínquos que não podem voltar. Tempos em que um mero raio de sol era capaz de iluminar toda uma existência. Tempos em que a dança das cores não precisava de melodia para poder me encantar. Tempos em que o arco-íris morava em casa e brilhava forte dentro de mim. Tempos em que o cristal não parecia tão frágil e nem prestes a se quebrar. Tempos em que ainda não era necessário juntar os pedaços de nada, porque tudo parecia inteiro, perfeito, eterno.

(texto originariamente publicado em 20/05/14. Foto: Emily Soto)

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OS NOSSOS PRIMEIROS DESENHOS

Não posso falar por todas as mulheres do mundo. Falo apenas por mim. A cada ano, quando meu aniversário se aproxima, sinto um certo desconforto, interior e exterior. Não. Na realidade, o desconforto exterior é na verdade interior: é uma certa insatisfação com a imagem que você vê no espelho.

Muito anos se passaram desde que você fez o seu primeiro desenho com lápis de cor. E se você se lembrar direitinho, vai ver que aqueles primeiros rabiscos já eram uma espécie de projeto de vida.

Do quanto me recordo, meus primeiros rascunhos em menina eram casinhas com chaminés fumegantes e cerquinhas brancas repletas de flores. Sempre havia também uma lagoa com alguns patinhos amarelos. Vivi neste cenário um bom par de anos, até que a imagem mudou. Um pouco maior, meus desenhos agora eram estradas cujas bordas convergiam no infinito. Nunca tive uma veia artística muito acurada, mas relembrando aquelas imagens, constato que a perspectiva que eu imprimia era bastante realista: as árvores que ficavam à margem da rodovia iam diminuindo de tamanho em direção ao horizonte. Por fim, um pouco mais mocinha, passei a desenhar ilhas com coqueiros, circundadas de um lindo mar ondulado e com a presença soberana de um enorme sol com raios fulgurantes.

Depois que eu cresci, abandonei esta minha arte. Afundei-me nos livros, em atividades esportivas de mil espécies e nas sapatilhas de ballet. Eu já não tinha tempo para me dedicar a aqueles antigos projetos.

Quando finalmente me tornei adulta, percebi que minha vida não se parecia em nada com aquilo que eu havia idealizado. O casamento desfeito me conferiu a certeza definitiva de que eu jamais iria morar naquela casinha cor de rosa de cuja chaminé saía a fumaça de deliciosos bolinhos de chocolate.

Morar em uma ilha deserta no meio do oceano também estava fora de questão. Meu habitat, agora, era uma cidade cinzenta, poluída e cheia de gente. E, quanto à minha estradinha, também nunca foi muito fácil encontrá-la: meu dia-a-dia passou a ser a correria, os compromissos, o trânsito e a falta de tempo.

Pensando em termos pragmáticos, pode-se concluir que eu não era lá muito feliz. Mas, para ser justa comigo mesma, infeliz eu também nunca fui. Apenas me deixei guiar pelo curso da vida e sempre afirmei a mim mesma que minha vida não tinha sido nem melhor e nem pior do quanto imaginado: apenas diferente.

Um dia, porém, tudo mudou. Não foi um estalo,  um milagre ou uma visão. Foi apenas uma mudança. Tudo mudou como tem de mudar quando você está em processo de amadurecimento. Por acaso uma semente se parece com uma fruta madura?

Do nada, veio a percepção. A felicidade não é algo estático, idealizado e imutável. Tal como ocorreu em nossa infância, nossos desenhos também  continuaram se modificando vida afora. Sendo assim, não há razão para frustrar-se com a não realização daqueles primeiros sonhos. Contabilize quantos projetos e planos você pôs em prática desde então.

Na verdade, tal qual aquele barquinho no mar azul, em nossas vidas fizemos inúmeras correções de velas e lemes que, felizmente, nos conduziram até este ponto.

De igual maneira, a perspectiva da estrada também continua existindo. Será que desde aquela época já não pensávamos, inconscientemente, que aquela era a via da nossa  própria existência?

E a casinha, ah, a casinha. É claro que ela existe dentro de nós, pois é lá que guardamos todos os nossos tesouros mais preciosos.

Pode parecer uma bobagem, mas foi uma descoberta e tanto. Porque se os desenhos não eram mais os mesmos, também não eram lá tão diferentes. A matéria-prima pode ter mudado, assim como as cores dos papéis e das canetas. Isto é fato inexorável.

Mas é também inquestionável que é a mesma mão que ainda segura os pincéis e os lápis de cor. Porque no fundo, embora tenhamos de nos submeter ao implacável passar do tempo, sabemos que somos as donas de  nossos cadernos e de nossas representações. A quem eu, humildemente, poderia chamaria de sonhos.

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(Texto originariamente publicado em 27/11/12. Foto: Emily Soto).

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O NINHO VAZIO

Sumi por mais de dois meses mas finalmente reapareci porque não é do meu feitio abandonar as obras começadas para deixá-las inacabadas. Na verdade, embora não justifique por completo o meu desaparecimento, há para o fato uma explicação. Ausentei-me do país para cursar um Mestrado em Direito Comparado. Caso você não saiba, algumas universidades estrangeiras disponibilizam os chamados “programas de verão”, de modo que, de maneira condensada, você conclui seus créditos sem precisar mudar-se de mala e cuia para o exterior. Após rigorosa prova de seleção, que contou com um exame escrito e com um exame oral em inglês, fui aprovada em terceiro lugar para o programa da Samford University. Meus créditos deverão ser concluídos em um total de quatro meses, o que significa dizer que, se tudo der certo, ano que vem fico fora por mais dois meses. E, após a conclusão dos créditos, terei mais três anos para a apresentação da minha tese.

A experiência neste período foi incrível. Passei um mês estudando na Cumberland School of Law, em Birmingham-AL (USA), e outro na University of Cambridge, em Cambridge (UK), o que me fez rejuvenescer cerca de vinte anos, já que, aqui, fiquei em um dormitório na própria faculdade (Sidney Sussex College – Cambridge University), exatamente como se vê nos filmes: um pequeno quarto com uma cama de solteiro, um armário para roupas, uma escrivaninha, algumas prateleiras, um frigobar antigo e uma cafeteira. Não havia televisão, nem interfone, nem qualquer comodidade  típica de hotel. Puro despojamento.

Nesses dois meses e pouco, meus pais, que moram muito perto, fizeram a gentileza de cuidar da minha correspondência, de abrir as janelas do apartamento e de aguar as minhas plantas. Não fosse isso, o ninho teria ficado completamente abandonado e vazio. Quer dizer, vazio ele ficou. Ou melhor, vazio ele sempre é, não fosse mesmo pela minha ilustre presença.

Muito superficialmente, já li algo sobre a chamada “Síndrome do Ninho Vazio”, que, em poucas palavras, pode ser entendida como o esvaziamento físico da estrutura familiar e que cede lugar a uma incontornável sensação de abandono e de solidão.

Embora eu seja divorciada há muitos anos e embora meu filho não more mais comigo há um certo tempo, particularmente não experimentei essa contundente sensação, o que, confesso, me deixou um pouco intrigada. Refletindo melhor, porém, atribuí a ausência de sofrimento ao fato de que tenho pautado minha vida em cima de uma sequência interminável de desafios pessoais, sem a concentração de minha energia em um único ponto, e o que não me desmerece, em absoluto. Acho que fui e que continuo sendo uma ótima mãe. Porém, com certa naturalidade aceito as circunstâncias cambiantes da vida, de modo que a tristeza pela partida de meu filho não se prolongou além do necessário. Aliás, considero extremamente estimulante ver, ainda que a uma certa distância, os seus progressos pessoais e profissionais. É um pássaro que já se aventura a seus próprios voos-solo. E, por isso mesmo, o ninho ter ficado vazio, ao menos para mim, não foi necessariamente triste ou ruim.

Quem convive comigo sabe que costumo dizer que as mulheres com asas não moram em casas, mas sim em ninhos. E digo isso porque casa parece ser um local físico muito insípido e impessoal. Os ninhos, ao contrário, são construídos artesanalmente, com amor e dedicação. Às vezes eles demoram anos para ser finalizados. E por isso mesmo, de uma certa forma, têm muito mais valor.

Eu amo a minha morada. É aqui que me encontro a mim mesma no final de cada dia. É aqui que guardo meus tesouros preciosos e também aquelas coisinhas aparentemente sem importância, mas que contam a história da gente. Tenho uma gavetinha onde estão armazenadas todas estas lembranças e quando estou prestes a me desconectar de mim, reavivo minha memória examinando aqueles pequeninos objetos carregados de emoção.

Meu ninho é o local do meu repouso, da minha meditação, das minhas orações. É também o lugar onde posso preparar nutritivas refeições e onde posso ouvir música, dançar e cantar. E é por isso  que tenho tanto respeito por ele.

Vira-e-mexe, acontece de eu me ausentar, como aconteceu nestes últimos dois meses. Mas nunca deixei de me lembrar que ele ficou ali, me esperando como sempre esteve, e a postos para me receber de volta de maneira afável e íntima.

Sinceramente, não vejo a história do ninho vazio como uma desvantagem na vida das mulheres com asas. Se você ficou sozinha porque motivo seja, mesmo que sua única atividade tenha sido dedicar-se à família pelos últimos mil anos, acho que é hora de você aproveitar com exclusividade  o seu precioso ninho. Se puder, mude alguns móveis, objetos ou as cores das paredes. Compre alguma coisa nova e não se esqueça de sempre manter algumas flores frescas no seu quarto. Abasteça sua geladeira com alimentos saudáveis e saborosos e seu guarda-roupa com itens do seu próprio gosto. E, principalmente, trate de você mesma com carinho e cuide do seu desenvolvimento pessoal. Corra para um novo trabalho, para um novo curso, para uma nova atividade. Aproveite a bênção do tempo livre que a vida agora te deu. E estabeleça laços muitos sérios com seu ninho, porque é ele quem te receberá no encerrar de cada dia.

E se, a final, qualquer hora você estiver cansada dele, como pode acontecer em qualquer relacionamento, tire um tempo e fique longe. Sem traumas e sem ressentimentos.

Quando você voltar, tenho certeza de que vocês farão as pazes e que você terá imenso reconhecimento e gratidão à vida por ter um abrigo cálido à sua espera e uma confortável cama que te abraça todas as noites sem qualquer exigência ou repreensão.

(Texto originariamente publicado em 12/08/12. Foto: HD Free Wallpapers).

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