Mulheres com Asas

Bons Voos.

Tag: filosofia

FEITO PLUMA

Tenho caminhado com certa dificuldade. Não falo sobre dificuldade mecânica, de locomoção, porque minhas pernas seguem fortes e vigorosas apesar de um insistente desconforto na panturrilha esquerda, para o qual houve até mesmo a indicação de um procedimento cirúrgico. Desde sempre minhas pernas têm sido o melhor do meu corpo, ainda que eu já tenha me submetido a cirurgias nos dois joelhos, a primeira aos dezenove anos e a segunda lá pelos trinta e sete. Mas, mesmo assim, elas nunca me deixaram na mão. Minhas pernas sempre me permitiram fazer o que eu bem entendesse. Com minhas pernas eu danço, corro, nado, mergulho, monto, faço trilhas e dirijo para qualquer lugar, sem receios ou incômodos. Não posso reclamar.

A caminhada difícil tem sido bem outra. É aquela caminhada da vida, aquela que nos obriga a seguir, mesmo quando você tem vontade de apenas parar e desistir. Em parte, os dias parecem longos e intermináveis. Há uma infindável lista de tarefas a cumprir, de problemas a resolver, de demandas a solucionar. Por outro lado, os dias voam ligeiros como aves de rapina. São rápidos, ágeis e rasantes. São eficientes em capturar as suas presas. Os dias consomem o tempo, a força, o ânimo, a juventude, o vigor. São predadores da nossa própria existência.

À noite, na hora de fechar a janela, eu sempre olho para o céu. Fico procurando por alguma estrela, que raramente vejo, porque as estrelas gostam mesmo é de se esconder por detrás das nuvens. As estrelas aqui na minha cidade são tímidas e fugidias. Dificilmente aparecem para lembrar o quanto o céu é infinito e o quanto elas podem ser lindas apesar de estarem tão distantes de nós. Então eu junto as cortinas e tento me alegrar com o fato de que em poucas horas o sol volta a brilhar.

Falar em brilho do sol nesse contexto é um pouco como figura de linguagem porque a maioria dos dias têm sido bastante cinzentos. Mas não tem problema. Acordar de manhã é sempre estimulante pois a gente, a cada dia, acredita que tudo por ser muito diferente. Mas sejamos honestos. Às vezes os dias podem mesmo ser incríveis, mas, no mais das vezes, os dias são apenas repetições do que foi ontem e ensaios para o que será amanhã. E por isso mesmo a caminhada da vida pode parecer assim, tão tediosa ou extenuante.

Fico pensando que a gente deveria ser feito pluma. Deveria não ter de se preocupar com nada e apenas se deixar levar. Imagine como seria belo sentir a leveza do corpo e da alma, esquecer a força da gravidade que nos afunda, e apenas deixar-se levar. Seria um mundo fluido, volátil, etéreo, incorpóreo. Mas é muito difícil conseguir flutuar. Quando as janelas do quarto se abrem a cada nova manhã, precisamos do peso do controle, da densidade da ação e da materialidade dos impulsos.

Nem mesmo uma ave plumada vive bem sem o dinamismo das suas asas. Ela pode flanar um pouquinho em sua inércia, mas depois de um tempo precisa retomar o ritmo compassado para continuar a equilibrar-se. Tampouco as aves escapam do realismo corpóreo deste universo.

Então ser como pluma é algo que você carrega somente nos seus sonhos, naquelas horas em que você apenas fecha os olhos e imagina a sensação de desapego, de desprendimento, de leveza. São aqueles instantes mágicos, mas fugidios, em que você acredita piamente que é capaz de flutuar. São momentos fugazes que não duram mais do que um piscar de olhos na velocidade das asas de um beija-flor.

Então você se lembra que é necessário fazer as asas vibrarem para manter-se vivo e não cair. Se observar bem, vai se recordar que também no céu é preciso estar atento para desviar dos picos das montanhas, para evitar os precipícios e para fugir das tempestades. A condição de inação não condiz com o mundo real.

Ser como a pluma é para quem já desistiu. Para quem se abandonou. Para quem deixou para trás a si mesmo. É difícil, eu sei. Em mesma sinto essa dor dentro de mim, porque às vezes tudo o que eu queria era entregar-me imóvel a uma rajada de vento. Mas é preciso acordar as suas asas a cada manhã e insistir com elas que devem permanecer em movimento. É preciso treinar-se. Liberdade não é exatamente deixar-se levar. Liberdade é algo muito mais complicado. É ter a certeza de que é preciso esforçar-se para permanecer vivo, mas, ainda assim, amar esse esforço porque ele é sempre um desafio. Liberdade é devotar-se à vida e saber que, em parte, ela própria depende de você. Isso faz de você dono e senhor de si. E esse é o maior dom e poder que um ser alado pode experimentar: ter consciência de suas próprias asas e saber como as pode dominar.

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(extraído de Google imagens)

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A FLECHA NO CORAÇÃO

“Quando uma estrela fica sem combustível, ela começa a esfriar e a gravidade assume o controle, provocando sua contração. Esta contração aperta os átomos, aproximando-os, e faz a estrela tornar-se novamente mais quente”. Esta afirmação de cunho científico está na página 82 do livro “Uma Nova História do Tempo”, de Stephen Hawking e Leonard Mlodinow. Pela terceira vez recomeço o livro desde o seu prefácio para tentar entender as coisas misteriosas e complexas desta casca de noz. E confesso que, em parte, meus esforços têm se mostrado em vão.
É muito interessante pensar que você se acha razoavelmente inteligente até descobrir que a força da gravidade altera o tempo, em sua essência. Certo. Você pode repetir mil vezes que tudo é relativo e que, se viajar mais rápido que a luz, poderá percorrer o tempo para trás. Ou pode também oferecer-se para pessoalmente testar o paradoxo dos gêmeos numa nave espacial com o bônus, ainda, de voltar mais jovem para a face da Terra. Ou, então, pode solenemente proclamar que tudo é infinito, que o universo não é tridimensional e que o início de tudo decorreu de uma simples explosão.
Muitas destas assertivas eu tenho reproduzido desde sempre. E desde sempre também tenho me perguntado sobre a correção das minhas conclusões. Além disso, parte do que digo sequer faz sentido para mim, o que me põe a duvidar da própria pertinência dos meus questionamentos.
Sinto-me um pouco frustrada porque minha mente não alcança o exato sentido das coisas, nem mesmo após a vagarosa leitura de texto didático por inúmeras vezes. Pode ser também que eu não tenha aptidão para o pensamento abstrato, pois, a despeito das minhas inúmeras tentativas, acabo sempre voltando a aquelas questões primárias que formulei na minha infância, em pouco ou nenhum progresso nas minhas respostas. E ecoa em minha mente: O que havia antes? O que haverá depois? Existe algo que possa ser espacialmente ilimitado? O que é o nada? O que é o eterno? Como vim parar aqui?
Em algum momento da minha vida li que se eu fosse capaz de entender alguns destes mistérios eu poderia ser muito mais feliz. É possível. Certamente a apreensão exata de dilemas bastante complexos tornaria muito mais intuitiva a compreensão dos fatos singelos e cotidianos, sob a acepção de suas razões e de seus por quês.
Alguém então poderia dizer que o entendimento da vida está muito mais inserido nas questões afetas à fé do que nas questões relativas à ciência. Meu pragmatismo, entretanto, insiste em buscar as imediatas e razoáveis explicações racionais para os eventos mais insignificantes da vida.
É do meu feitio, como se diria. Mas, por outro lado, este mesmo pragmatismo me empurra para frente, como que dizendo que não há tempo para abrir o livro pela terceira vez. E eu sigo esta voz. Acabo me impelindo para a frente sem parar para analisar muito do que ocorre em minha vida. Perde-se um pouco, é verdade. Mas ganha-se em tempo e otimização, o que parece lá ter suas vantagens.
Uma antiga lenda fala de um índio que recebeu uma flechada envenenada em seu coração. Indignado, quis saber quem tinha disparado a flecha, a razão para o ataque, o tamanho do arco, a distância do inimigo, a composição do veneno, e outros detalhes que somente os animais da mata poderiam esclarecer. O curandeiro, então, sugeriu que ele primeiro retirasse a flecha do seu peito para, somente depois, continuar com suas reflexões. De fato, a teimosia e a pressa por conhecer todas as respostas certamente o deixariam morrer.
E assim ficamos presas no dilema entre o perguntar ou o prosseguir, em um ciclo que não conduz a um resultado prático satisfatório.
Às vezes simplesmente andamos. Em outras ocasiões, voltamos a aquelas questões antigas e que são paralisantes. Ou então apenas emperramos, tentando entender o significado de algum específico episódio ou as razões pelas quais as coisas são como são.
Falta sabedoria. De minha parte, eu deveria ser prática como o curandeiro sugeriu e arrancar de vez a flecha envenenada do meu coração.
Ocorre que eu consigo entender as inquietações do índio. Como andar pela floresta sem conhecer o inimigo e de ter a certeza de quantos são? Como preparar-se para a defesa sem saber as razões para o ataque? Como municiar-se adequadamente sem inteirar-se do poder de fogo do guerreiro adversário?
As perguntas são pertinentes, por evidente. O problema é que talvez nunca se chegue às respostas corretas, se é que elas existem. Considere, por exemplo, a possibilidade de a flechada ter sido fruto de um mero acidente. Neste caso, não existiriam inimigos e nem confrontos futuros. O índio teria se desgastado inutilmente em tentar encontrar as explicações, que, a rigor, não passam mesmo de suposições.
Então é melhor andar. Porque quando a gente simplesmente para, o combustível vital se esvai, a vida se esfria, as contingências tomam o comando e o corpo se contrai. É assim também com as estrelas, como aprendi e transcrevi no início deste texto, em trecho que, para minha felicidade, compreendi em sua plenitude.
Nas situações extremas, você chega ao seu limite e é necessária significativa pressão decorrente da contração para que você possa se reaquecer. O processo é penoso. O sofrimento é intenso. O esforço é desmedido. E a perda de parte da vitalidade é irrecuperável.
Estou convencida de que a estagnação, ainda que temporária, é sempre prejudicial.
Melhor que se retire logo a flecha do peito para que se inicie a recuperação. É uma questão de prioridade cuidar primeiro do que é essencial, palpável e conhecido. O resto é o resto. Você poderá entender posteriormente, caso exista mesmo algum sentido. Na pior das hipóteses, você tem a eternidade.
E aprenda o que é a resiliência dos corpos, a magnífica capacidade de voltar ao estado anterior após acentuada deformação.
No mais, siga em frente, sempre. Há uma imensa estrada logo ali. E também não há que se enxergar desde logo qual é o ponto de chegada. Ao contrário, basta que se consiga iluminar apenas alguns poucos metros à frente para entender qual é o melhor caminho a seguir.
(Texto originariamente publicado em 04/02/15. Foto: Favim).
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SOMOS TODAS LINDAS

Dia Internacional da Mulher. Acho válido, mas, a rigor, penso que não haveria necessidade de se criar uma data específica para esta espécie de comemoração.

E isto porque todos os dias são nossos. Sem qualquer exceção.

São nossos porque aprendemos a nos apropriar da vida e de tudo de bom que ela pode nos oferecer.

Com o tempo, desenvolvemos a arte de tomar posse de nós mesmas, de modo a afastar os ladrões dos nossos espíritos e das nossas inspirações. Aprimoramo-nos sempre na tarefa de defender o que é nosso por direito e por outorga da nossa própria existência, como resultado de todas as trilhas que duramente percorremos até aqui.

Nossos corpos são nossos. E são entregues a outrem apenas quando assim o desejamos.

Nossas almas são nossas e não são passíveis de aprisionamento.

Nossos corações são nossos e a ninguém é dado o direito de que sejam desestabilizados.

Nossos atos, certos ou errados, são fruto das nossas necessidades e incumbe apenas a nós mesmas o dever de julgar o seu acerto.

Nosso trabalho é o mais nobre que existe, pois foi elaborado com nossas mentes e com nossas próprias mãos.

Nossas amigas são como nossos espelhos, em que vemos a nós mesmas com muita nitidez.

Nossos filhos não são nossos, mas de nós vieram e por isso mesmo são seres sagrados.

Nossas casas são nosso santuário de amor.

Nossos altares são qualquer lugar do mundo em que possamos nos ver em sintonia com nós mesmas.

Nossos sonhos são secretos e inacessíveis.

Nossos sorrisos são as lamparinas que usamos para iluminar nossos caminhos.

E nossas lágrimas são as gotas de orvalho que enfeitam o jardim da nossa existência.

Nossa aparência é nossa forma de estar no mundo. E pouco importa como ela seja, porque nós somos nós, com tudo aquilo nos pertence. Sem mais nem menos. Apenas o que somos: aquela menina que cresceu mas que jamais abandonou seu poder de ser feliz, seus ideais e seus encantos.

E somos belas, muito belas, porque conhecemos este segredo. E é o que basta à nossa beleza. É o que  basta ao encantamento. É o quanto basta à poesia da vida.

Não há nada no universo que conspire contra e que se contraponha a esta verdade: somos todas lindas!

(Texto originariamente publicado em 08/03/12. Foto: Favim).

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