Muitas vezes já me peguei pensando nas minhas atitudes sobre a face da Terra. Embora eu tenha uma quantidade bastante razoável de defeitos, é claro que não me considero uma pessoa ruim ou má. Mas também disso não tenho certeza, pois tenho que contar com a possibilidade de que minha própria falta de modéstia, que é tecnicamente um pecado capital, tenha me levado a essa otimista conclusão. Mas esse auto-juízo não é privilégio meu. Em um julgamento superficial e sem qualquer base científica ou estatística, posso afirmar que a  grande maioria das pessoas se considera bastante aceitável sob a ótica ética e moral. E quando você vai a fundo para investigar as razões desta avaliação benevolente, acaba encontrando sempre uma resposta muito parecida: “não faço mal a ninguém”.

Não tenho grande conhecimento sobre a evolução do estágio psíquico, emocional e espiritual do homem através dos tempos. Mas qualquer um que tenha frequentado a escola pode identificar, sem nenhuma dificuldade, inúmeros exemplos de atrocidades cometidas ao longo da história da humanidade desde eras imemoriais. Sendo assim, embora não se possa afirmar com certeza que o homem de hoje seja dotado de bondade relevante, também não se pode asseverar que os espécimes anteriores tenham sido melhores que os atuais. E postos assim o postulado e a conclusão, o que se pode perceber é que, ressalvadas algumas poucas variáveis, o homem tem se mantido o mesmo em termos de caridade e benevolência, em comportamento absolutamente deficitário com relação aos mais elementares paradigmas filosóficos.

Dante Alighieri nasceu em Florença, Itália, no ano de 1265. Morreu cinquenta e seis anos depois e, desde então, tem sido considerado o maior poeta da língua italiana. Sua principal obra foi a famosíssima “Divina Comédia”, consistente em um poema escrito em dialeto local com estrutura épica e propósitos éticos. Divide-se em três partes, tais sejam o Inferno, o Paraíso e o Purgatório. A composição formal da obra baseia-se na simbologia do número três. Há três personagens principais: Dante, Beatriz e Virgílio, que representam, respectivamente, o homem, a fé e a razão. Cada estrofe tem três versos e cada uma de suas partes contém 33 cantos. E cada um dos três lugares são compostos por nove círculos, em uma fórmula matemática auto-explicativa.

A obra é complexa e parte de sua beleza se perde se você não tiver familiaridade com o idioma original. Não li a “Comédia” por inteiro, mas ouvi falar de um trecho que me chamou muito a atenção. Explico antes como é estruturado o Inferno. Formado, como dito, por nove círculos concêntricos, cada um destes trata de uma categoria de pecados e de pecadores. Isto é, dependendo da natureza do pecado, o morto permanece em um determinado círculo. Por exemplo, se você for um herege, seu lugar é no Sexto Círculo, conhecido como Cidade de Dite. Se você, diferentemente, for um traidor, será acomodado no Nono Círculo, também nominado Lago Cocite, sendo que, a depender da qualidade do traído (parente, pátria, hóspede, mestre ou rei), você deverá enfrentar uma Esfera específica.

Pois bem. A par destes Nove Círculos que bem descrevem a metodologia e critério do destino destas almas, o autor dedicou-se a explicar o que ele chamou de “Vestíbulo do Inferno” ou “Ante-Inferno”. Em sua odisséia subterrânea, os personagens deparam-se com almas desesperadas, correndo de um lado para outro. E indagando o Mestre, este respondeu ao interlocutor que aquele local era destinado às almas que não podiam ir nem para o Paraíso e nem para o Inferno. Elas não eram ruins o suficiente para sofrerem em algum dos Nove Círculos após transporem o Portal. Por outro lado, também nada haviam feito de bom que ora justificasse o seu ingresso no Paraíso. Faz sentido. E faz mais sentido ainda pensar que, mesmo já nesta complicada situação, estas almas também merecessem sua própria punição. Para Dante, as escolhas na vida determinam recompensas, positivas ou negativas. Ademais, quem se recusa a escolher é porque escolheu própria indecisão. E porque esta pessoa escolheu a indecisão deve ser tida por covarde. E porque é considerada covarde deve pagar por isso, correndo em filas atrás de uma bandeira e sendo perseguida por vespas e moscões. Assim funciona a morte naquele patamar.

Não sei o significado da bandeira e muito menos dos insetos no contexto da obra. De toda forma, parece intuitivo concluir desta passagem que não fazer o mal em nossas vidas não é lá grande coisa se você sempre tem a opção de praticar o bem. É quase como dizer que não fazer o mal não representa mérito algum, já que é mera obrigação.

Refletindo sobre isso, passei a reavaliar os meus conceitos sobre mim mesma. Tive de recuar em minha presunção de que ser inofensiva era o que me bastava. E vou ter que me dedicar a examinar esta questão da caridade com um pouco mais de atenção.

Como todos sabem, o bem e o mal possuem consequências. Eu mesma sou da opinião de que “aqui se faz, aqui se paga”. Porém, o que desejo destacar é que a apatia, a inação e a indecisão também pagam o seu preço, quer você seja religioso ou não. Pois assim como a maldade e a bondade podem encontrar eco nesta nossa vida cotidiana, a indiferença também há de produzir resultados em nossa existência.

Sendo assim, termino esta postagem como um conselho, que, embora não pedido, ouso dar à leitora, quiçá como uma tentativa de primeiro ato de bondade: além de não fazermos o mal, que tal tentarmos fazer o bem?

(Texto publicado originariamente em 11/05/12. Foto: Favim).

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