Mulheres com Asas

Bons Voos.

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A LEVEZA E O PESO DO SER

Existem duas coisas que eu tenho o prazer de nunca haver possuído: televisão no quarto e balança no banheiro. Nem mesmo na década de oitenta, quando todos os jovens enlouqueciam para ter uma televisão só sua e um vídeo-cassete de última geração, senti vontade de ter uma só para mim. Meu irmão, não. Sempre adepto da tecnologia, logo conseguiu com meus pais uma televisão somente para ele e um protótipo do que viria a ser hoje um rudimentar computador de uso pessoal. Mas minha opção não tem nada a ver com a falta de uma veia consumista. Ao contrário, sou tão seletiva que cada ambiente da casa tem, para mim, que ostentar apenas sua específica função. Quarto é só para dormir. Por isso mesmo ele se chama dormitório. E a televisão merece uma sala só para ela. Esta é a dinâmica da minha casa. E então, quando vou para os meus aposentos íntimos todas as noites, não levo comigo as lágrimas dos filmes, as risadas das comédias e a violência dos noticiários. Tudo fica lá fora e, assim, consigo ter noites muito mais leves e tranquilas, sem o peso das emoções exteriores.

Já a questão da balança é muito diferente. Nunca concebi que eu pudesse manter um instrumento dentro de casa capaz de me subjugar. Não consigo me imaginar aferindo meu peso corporal uma ou duas vezes ao dia apenas para me torturar. Porque, verdade seja dita, você não precisa da balança para saber a quantas anda a sua condição. Para isso, basta uma calça jeans, que, indubitavelmente, possui a necessária precisão científica capaz de aferir o acréscimo de um único grama.

Fala-se muito em leveza da alma e em leveza do corpo. Mas não são eles parâmetros absolutos para medir o grau da sua felicidade. Principalmente se não andarem juntos. Porque de nada adianta a leveza do corpo se a sua alma é pesada e carrega consigo toneladas de mágoa e de rancores. E também de nada vale a leveza da alma se o seu corpo acumular resíduos tóxicos de alimentos, bebidas, cigarros, medicamentos ou qualquer outra droga, lícita ou não. De igual maneira, você será incapaz de voar.

Mas para tudo na vida, exceto para a morte (a morte pertence à vida?), há uma solução, que é o lento caminhar. Ele funciona sempre, para as questões do corpo e para as questões da alma. Funciona para o corpo porque, paulatinamente, põe em ritmo o seu metabolismo e acelera a sua queima calórica. Qualquer mulher sabe disso. E funciona para a alma porque somente com a perseverança e com o passar do tempo é possível livrar-se de certos pesos inúteis, como a culpa, o ódio, a baixa auto-estima e a falta de perdão.

Como em qualquer dieta, os resultados imediatos não são definitivos. Para a efetividade do processo de leveza, é preciso muita paciência e compaixão consigo própria. Nem para o corpo e nem para alma é bom você se castigar para atingir os seus objetivos. É necessário, antes de mais nada, compreender os processos. Sem a compreensão, não haverá aproveitamento positivo. Então é bom que você se informe e que se cerque de um ambiente propício. Estude a si mesma e conclua o que precisa ser mudado. Selecione melhor suas compras e evite entupir seu carrinho com deliciosas guloseimas. Selecione melhor seus amigos e evite trazer para casa os tentadores seres predatórios da sua vitalidade e da sua auto-confiança. Aproprie-se apenas daquilo que é bom, que eleva, que produz. Descarte o que é negativo, o que arrasta, o que prende e o que condena.

E siga caminhando. Quando se cansar, volte aos seus aposentos sagrados e deixe lá fora todas as dificuldades. Estique seus lençóis mais bonitos, afofe seu travesseiro, feche a cortina e feche seus olhos. Nada ali vai te perturbar. E quando o sol da nova manhã raiar horas depois, abra a janela e abra o seu coração. Olhe-se no espelho e tente ver se alguma coisa mudou. Faça isto antes da maquiagem, quando ainda não há nada entre a gente e a gente mesma. Se algo mudou, parabéns. E se nada ainda parece ter mudado, apenas caminhe lentamente mais este dia. É assim mesmo. Demora um pouco para ver a germinação da semente.

(Texto originariamente publicado em 23/09/12). Foto: Favim).

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COMPREENDENDO OS CICLOS

Mulheres com asas são fortes, mas caem. São persistentes, mas desanimam. São audaciosas, mas desistem. E são assim porque são mulheres e porque seu ritmo é ondulatório. As mulheres são criticadas por serem instáveis, mas reduzir o que acontece com elas a este mero estigma não parece justo. Há muito mais por trás da psique de uma mulher.

Para começar, a mulher é um ser sensível e, por isso mesmo, parece natural que oscile em razão dos acontecimentos exteriores e interiores. Além disso, as questões hormonais não se inserem no campo do psicológico ou do imaginário. Esta espécie de alteração é capturável por instrumentos científicos. Por fim, é da natureza da mulher caminhar em ondas ou ciclos, por mais determinada que ela seja.

Uma mulher é facilmente capaz de dar dois passos para a frente e um para trás pra chegar aonde precisa. Não se trata de indecisão. Muitas vezes, as mulheres precisam apenas recuperar o fôlego, examinar melhor o terreno em que caminham ou se prepararem para um passo mais ousado. Isto não é um defeito, é uma característica. Aliás, eu diria que se trata de um atributo positivo, pois revela preocupação, cautela, e consciência, inclusive dos próprios limites.

Mesmo a mais arrojada das mulheres sabe, instintivamente, até onde pode ir. E quando ultrapassa a linha do aceitável, põe-se em contato consigo mesma para retroceder e retomar seu auto-controle e sua auto-estima. Quando uma mulher não consegue fazer isso, provavelmente está doente e precisando de muita, muita ajuda.

As mulheres são seres que analisam, investigam, conferem, verificam, checam e inspecionam. E não são assim por pura maldade, curiosidade ou por defeito de caráter. São assim porque precisam conhecer o solo em que pisam e necessitam se certificar da adequação do terreno em que estão trilhando. O preço disso é que muitas vezes são mal compreendidas e julgadas.

Mas isso não tem a menor importância. Um julgamento não muda uma essência. E a essência da mulher é perscrutar o ambiente até que nele se sinta bem. As coisas são como são. E é assim com a mulher.

Às vezes, quando nada parece funcionar, é preciso ajustar as velas e mudar de direção. E às vezes é preciso recuar. Ou para ir embora de vez, ou para ganhar impulso e poder atravessar a fronteira. De todo modo, quando a mulher parece estar retrocedendo, na verdade ela está recuperando as suas energias para empreender uma mudança.

Quando a mulher cai, pode se sentir muito só e infeliz. Mas em muitos casos só mesmo seu afastamento pode ser sua salvação. Quem aprende a viver sozinho suporta melhor as dificuldades. Mas em muitas situações, o movimento de marcha-à-ré inclui a coletivização dos seus sentimentos. Não há quem duvide que a terapia entre amigas é o mais eficaz remédio que existe.

As mulheres devem compreender e aceitar os seus ciclos como parte da sua existência. Sentir-se desvitalizada ou desanimada é um efeito colateral da premência de uma mudança.

As aves migratórias vêm sendo estudadas e não há uma constatação unânime para a razão deste comportamento. O que se sabe é que algumas espécies voam milhares de quilômetros somente para encontrar melhores condições meteorológicas e alimento. Os estudiosos ainda procuram novas explicações, mas me parece que estas duas causas já justificam o esforço.

Quando uma mulher estiver insatisfeita com o seu ganha-pão ou com seu habitat, pode ser hora de partir. Observando os fenômenos naturais, constata-se que, em poucos casos, imitar a natureza não será sábio. Sendo assim, quando não estiver se sentindo bem, estude e questione as suas causas. E a  partir de suas conclusões, você poderá então decidir entre dedicar-se a seu ninho ou bater asas rumo a um novo horizonte.

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Texto originariamente publicado em 16/09/12. Foto: Roksolana Zasiadko.

A CANÇÃO QUE VEM DE DENTRO

Nos momentos de tristeza, gosto de ouvir uma boa música, de preferência que me emocione ainda mais. A música, para mim, acalma, eleva, tranquiliza. Pode parecer que uma música melódica acentue um senso de nostalgia. Mas não é bem assim. Os sons das boas músicas são mágicos e possuem chaves capazes de abrir portas e janelas. E, se às vezes não podem abri-las, são capazes de atravessar as suas paredes.

A música é um elemento atemporal. Cruza oceanos, eras, idades, sentimentos. Não morre nunca e sempre é  transmitida. Já era assim séculos e séculos antes da globalização.

As mentes e os corações gravam tons, melodias, harmonias e ritmos e sempre os reconhecem. Não se sabe ao certo onde as memórias musicais ficam guardadas, mas, se uma música possui significância, possui também o poder de escancarar comportas secretas sem pedir licença ou desculpas.

Os sons vêm e as memórias simplesmente se despertam. Memórias do que vivemos, do que não vivemos, do que poderíamos ter vivido, do que nunca viveríamos, do que nunca viveremos.

Não conheço meio de transporte mais eficaz que a música. Mas não sei dizer se é você quem a leva no coração ou se é ela quem te conduz.

Nunca tive tino musical. Além de algumas poucas aulas de flauta doce e de acordes desajeitados no violão, nunca produzi som melódico algum. Mas não tem problema porque, em lugar deste dom, fui contemplada com a possibilidade de bem escutar o que a música tem a me dizer.

Os sons em si são palavras com significado. Uma música instrumental pode revelar uma vida inteira e os mistérios de toda uma existência. E os intervalos entre as notas são tão belos quanto os sons  que se coordenam por um maestro. Quem consegue caminhar sem o necessário espaço entre um passo e outro nas trilhas dos nossos caminhos? Há quem diga que a música é o silêncio interrompido pelas notas. Não cheguei a uma conclusão e este é, para mim, o maior segredo que as partituras guardam caladas.

Como muitas coisas da vida, a música em si mesma é um mistério que não se compreende: apenas se aprecia. A boa música que toca ali fora toca também seu coração de forma a interferir no seu ritmo existencial. É a reverberação da arte desnudando a sensibilidade de quem escuta.

Não menospreze a música, nem na alegria, nem na tristeza, nem na saúde, nem na doença. Não desconfie do seu poder curativo, emocional, energético.

Suspeito que os músicos sejam magos. Talvez porque eu não os entenda. Mas você não precisa mesmo entendê-los para respeitá-los. Os músicos em si próprios são instrumentos de emoções. Eles compõem com sua sensibilidade e, com esta, tocam o seu ser.

Quando eu gosto de uma música, posso ouvi-la um milhão de vezes. E, quando chego a este ponto, algo dentro de mim começa a despertar. Pode ser a compreensão de um fato, pode ser a resolução de problema, pode ser o perdão de uma pessoa, pode ser a saudade de outra. E aquilo que brota em mim finalmente desabrocha, agora em forma de prece.

A música não precisa ser sacra para tornar uma pessoa mais sábia ou, pelo menos, mais consciente de si. Porque a boa música pode ser de qualquer gênero ou estilo. E ela será boa na exata medida da sua  capacidade de transformação.

E nem vou falar dos sons da natureza, que são sagrados em sua essência. Falo mesmo das canções dos homens, das mulheres, das crianças, dos povos, dos fortes, dos fracos, dos gigantes e dos pequeninos. Porque toda boa música que existe desdobra-se na paz. E toda a paz que se cria enseja um cântico de louvor. E todo louvor que se reconhece encerra gratidão. Pela mera dádiva de ouvir e de viver

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Texto originariamente publicado em 25/08/12. Foto: Dalton Lane

O NINHO VAZIO

Sumi por mais de dois meses mas finalmente reapareci porque não é do meu feitio abandonar as obras começadas para deixá-las inacabadas. Na verdade, embora não justifique por completo o meu desaparecimento, há para o fato uma explicação. Ausentei-me do país para cursar um Mestrado em Direito Comparado. Caso você não saiba, algumas universidades estrangeiras disponibilizam os chamados “programas de verão”, de modo que, de maneira condensada, você conclui seus créditos sem precisar mudar-se de mala e cuia para o exterior. Após rigorosa prova de seleção, que contou com um exame escrito e com um exame oral em inglês, fui aprovada em terceiro lugar para o programa da Samford University. Meus créditos deverão ser concluídos em um total de quatro meses, o que significa dizer que, se tudo der certo, ano que vem fico fora por mais dois meses. E, após a conclusão dos créditos, terei mais três anos para a apresentação da minha tese.

A experiência neste período foi incrível. Passei um mês estudando na Cumberland School of Law, em Birmingham-AL (USA), e outro na University of Cambridge, em Cambridge (UK), o que me fez rejuvenescer cerca de vinte anos, já que, aqui, fiquei em um dormitório na própria faculdade (Sidney Sussex College – Cambridge University), exatamente como se vê nos filmes: um pequeno quarto com uma cama de solteiro, um armário para roupas, uma escrivaninha, algumas prateleiras, um frigobar antigo e uma cafeteira. Não havia televisão, nem interfone, nem qualquer comodidade  típica de hotel. Puro despojamento.

Nesses dois meses e pouco, meus pais, que moram muito perto, fizeram a gentileza de cuidar da minha correspondência, de abrir as janelas do apartamento e de aguar as minhas plantas. Não fosse isso, o ninho teria ficado completamente abandonado e vazio. Quer dizer, vazio ele ficou. Ou melhor, vazio ele sempre é, não fosse mesmo pela minha ilustre presença.

Muito superficialmente, já li algo sobre a chamada “Síndrome do Ninho Vazio”, que, em poucas palavras, pode ser entendida como o esvaziamento físico da estrutura familiar e que cede lugar a uma incontornável sensação de abandono e de solidão.

Embora eu seja divorciada há muitos anos e embora meu filho não more mais comigo há um certo tempo, particularmente não experimentei essa contundente sensação, o que, confesso, me deixou um pouco intrigada. Refletindo melhor, porém, atribuí a ausência de sofrimento ao fato de que tenho pautado minha vida em cima de uma sequência interminável de desafios pessoais, sem a concentração de minha energia em um único ponto, e o que não me desmerece, em absoluto. Acho que fui e que continuo sendo uma ótima mãe. Porém, com certa naturalidade aceito as circunstâncias cambiantes da vida, de modo que a tristeza pela partida de meu filho não se prolongou além do necessário. Aliás, considero extremamente estimulante ver, ainda que a uma certa distância, os seus progressos pessoais e profissionais. É um pássaro que já se aventura a seus próprios voos-solo. E, por isso mesmo, o ninho ter ficado vazio, ao menos para mim, não foi necessariamente triste ou ruim.

Quem convive comigo sabe que costumo dizer que as mulheres com asas não moram em casas, mas sim em ninhos. E digo isso porque casa parece ser um local físico muito insípido e impessoal. Os ninhos, ao contrário, são construídos artesanalmente, com amor e dedicação. Às vezes eles demoram anos para ser finalizados. E por isso mesmo, de uma certa forma, têm muito mais valor.

Eu amo a minha morada. É aqui que me encontro a mim mesma no final de cada dia. É aqui que guardo meus tesouros preciosos e também aquelas coisinhas aparentemente sem importância, mas que contam a história da gente. Tenho uma gavetinha onde estão armazenadas todas estas lembranças e quando estou prestes a me desconectar de mim, reavivo minha memória examinando aqueles pequeninos objetos carregados de emoção.

Meu ninho é o local do meu repouso, da minha meditação, das minhas orações. É também o lugar onde posso preparar nutritivas refeições e onde posso ouvir música, dançar e cantar. E é por isso  que tenho tanto respeito por ele.

Vira-e-mexe, acontece de eu me ausentar, como aconteceu nestes últimos dois meses. Mas nunca deixei de me lembrar que ele ficou ali, me esperando como sempre esteve, e a postos para me receber de volta de maneira afável e íntima.

Sinceramente, não vejo a história do ninho vazio como uma desvantagem na vida das mulheres com asas. Se você ficou sozinha porque motivo seja, mesmo que sua única atividade tenha sido dedicar-se à família pelos últimos mil anos, acho que é hora de você aproveitar com exclusividade  o seu precioso ninho. Se puder, mude alguns móveis, objetos ou as cores das paredes. Compre alguma coisa nova e não se esqueça de sempre manter algumas flores frescas no seu quarto. Abasteça sua geladeira com alimentos saudáveis e saborosos e seu guarda-roupa com itens do seu próprio gosto. E, principalmente, trate de você mesma com carinho e cuide do seu desenvolvimento pessoal. Corra para um novo trabalho, para um novo curso, para uma nova atividade. Aproveite a bênção do tempo livre que a vida agora te deu. E estabeleça laços muitos sérios com seu ninho, porque é ele quem te receberá no encerrar de cada dia.

E se, a final, qualquer hora você estiver cansada dele, como pode acontecer em qualquer relacionamento, tire um tempo e fique longe. Sem traumas e sem ressentimentos.

Quando você voltar, tenho certeza de que vocês farão as pazes e que você terá imenso reconhecimento e gratidão à vida por ter um abrigo cálido à sua espera e uma confortável cama que te abraça todas as noites sem qualquer exigência ou repreensão.

(Texto originariamente publicado em 12/08/12. Foto: HD Free Wallpapers).

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O AR QUE EU RESPIRO

No ano de 2010, resolvi fazer o famoso trekking até o Campo Base do Everest, seguindo trilha a partir do Nepal. Sei que esta história já até virou rotina neste Blog, mas preciso dizer que, mais uma vez, não consegui encontrar um boa alma que encarasse a aventura comigo. Aliás, quanto a esta questão, devo admitir que, após repetidas experiências, tornei-me um pouco cética quanto à possibilidade de encontrar companheiros de viagem para as minhas escolhas. E, assim, passei a buscar eu mesma o que havia de disponível no mercado. É claro que esta viagem não pode ser realizada sem uma equipe. Tratei, então, de pesquisar as agências brasileiras que organizam grupos e, depois de alguns telefonemas, acabei fechando com a Venturas e Aventuras para a saída do mês de outubro daquele ano.

Meus dois joelhos são operados e tive receio de sentir dores no percurso, pois são muitas horas de caminhada durante aproximadamente dezesseis dias na montanha. Dediquei-me, portanto, um bom trabalho de isometria que deu muitíssimo certo.  Não senti nenhum incômodo. Além disso, rapidamente comprei uma bota para amaciá-la, o que se mostrou absolutamente essencial. E, ainda antes da nossa partida, tivemos uma reunião na agência de turismo para conhecermos os demais passageiros. O grupo era formado por cerca de doze pessoas avulsas, mas não necessariamente solteiras ou descasadas. O fato é que o gosto por este tipo de viagem é algo tão específico que, ao menos ali, não foi possível reunir sequer um casal. Os casados que havia seguiram sós com seus devidos alvarás conjugais.

A viagem até Kathmandu, Capital do Nepal, é bastante longa. Seguimos via Istambul, o que foi muito bom, pois, praticamente pelo mesmo custo, um outro país acabou por ser incluído no roteiro. É certo que não deu para conhecer muita coisa. A única pernoite, porém, me deixou com muita vontade de retornar à Turquia. De lá, seguimos para Delhi, onde tivemos mais uma noite antes de seguir a Kathmandu. E, desta Capital, pegamos aquele famoso aviãozinho que aterrissa em Lukla, aos pés do Himalaia, em uma pista de pouso curtíssima e que termina em inclinação ascendente para que a aeronave consiga frear a tempo de não deslizar para fora. E é ali, em Lukla, que a aventura propriamente dita se inicia.

A rotina dos dias na montanha é mais ou menos a seguinte. Suas pernoites são feitas em lodges, que são uma espécie de hospedarias muitíssimo simples. Nos primeiros vilarejos, ainda é possível que você consiga se alojar em um quarto com banheiro. Mas, conforme você vai avançando, esta comodidade simplesmente deixa de existir e, a depender do local, você poderá encontrá-la no fundo do corredor ou do lado de fora, a alguns metros de distância. A água quente é rara também e você tem que pagar por ela para utilizar um sistema de baldes. Abro aqui um parêntese. O frio que senti na montanha foi tão intenso e os banhos se mostraram tão desconfortáveis, que transformei este hábito em gênero de quinta necessidade. Que ninguém me ouça.

As paisagens do trajeto são exuberantes e você chega a se questionar se por acaso não mudou de planeta sem perceber. E o povo é tão simpático e amoroso que você se desconecta da palavra cansaço, mesmo após muitas horas seguindo a pé montanha acima.

É claro que a viagem não é fácil e que isso não é novidade para ninguém. Mas o ponto crucial do sucesso é mesmo a resposta do seu corpo à ausência de oxigênio. Com o passar dos dias, o ar realmente começa a faltar e coisas estranhas podem acontecer no seu organismo. No meu grupo, houve pessoas que não puderam prosseguir em razão de reações orgânicas que o conhecido “mal da montanha” acabou por provocar. Não senti efeitos impactantes no meu corpo, à exceção de uma crônica dor de cabeça e de algum mal estar à noite. Mas, bem ou mal, e com a ajuda de muitos comprimidos, acabei prosseguindo e cheguei até o meu objetivo. Depois disso, confesso, senti-me esgotada para começar a descida e, junto com outros dois companheiros de jornada, rateamos o custo de um helicóptero para antecipar o retorno a Kathmandu. Boa escolha.

Obviamente, é impossível narrar em uma única postagem tudo de bom e de ruim que acontece numa longa viagem. Mas o que eu quero deixar claro é que, apesar das adversidades, a jornada valeu muito a pena. Valeu apesar do desconforto, das restrições, das dores, do cansaço, do peito arfando, do frio, da comida, de pessoas não muito legais, de alguns guias despreparados e de muitas situações inconvenientes. Afirmo e explico: quando você se encontra em situações adversas, em que sequer o ar se acha convenientemente disponível, não há tempo para elocubrações. Os subjetivismos, as ponderações, as mágoas, as diferenças, a vaidade, a volúpia e toda a gama dos imponderáveis sentimentos humanos simplesmente desaparecem como em um passe de mágica. Na verdade, sob tais condições, tudo o que você deseja é viver e sobreviver. É incrível como uma mera viagem pode mudar a perspectiva de toda uma vida. No meu caso, esta percepção foi imediata e jurei a mim mesma parar de reclamar por qualquer bobagem ou insatisfação.

E embora eu não deva me intrometer na vida alheia, quando vejo alguém protestando e sofrendo inutilmente, minha vontade é de simplesmente dizer à pessoa: “você reparou que você está respirando?”. É quase o que basta para que possamos permanecer de pé no planeta.

Sendo assim, quando você se sentir contrariada, respire, inspire, expire e relaxe. E você perceberá, então, que a salvação e a cura da sua alma podem, miraculosamente, residir no plano do próprio invisível. E, o melhor: sem necessidade de fé, crença ou religião.

(Texto originariamente publicado em 25/05/12. Foto: Pinterest)

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UM SÁBIO CHAMADO TEMPO

Era uma vez um sábio chamado Tempo. Tempo era tão culto e erudito que, nos quatro cantos do mundo, era conhecido como o Senhor da Razão. Tempo não falhava. E também não faltava. Não falhava porque, mais dia, menos dia, as coisas confiadas a ele sempre acabavam por acontecer. E não faltava porque nunca se recusou a estar à disposição das coisas e das pessoas. Entretanto, apesar de sua notável perfeição e sapiência, Tempo nunca foi um ente muito bem compreendido e parte disso sempre se deveu à dificuldade de aceitar que, contra ele, não existem argumentos ou ações. Tempo é soberano e é praticamente intransponível.

Em um certo sentido, Tempo tem sido acusado de ser cruel e implacável. Através de seus olhos, é possível observar-se a beleza, a saúde e a vida se esvaindo até seu completo desaparecimento. E não há ninguém, nem ciência e nem religião, capaz de deter esta força. Questionado sobre tais angústias humanas, Tempo tem se limitado a responder que as coisas simplesmente são assim. E são assim porque nada no mundo é estático e porque o fluxo da vida segue em uma direção de mão única. Cada célula dos nossos corpos encontra-se em processo de envelhecimento desde ao menos o dia do nosso nascimento. E, se é assustador pensar assim, serve de alento o fato de que esta é uma verdade fisiológica universal, comum a todos os seres vivos.

Tempo tem explicado que, na vida, as coisas tem um começo, um meio e um fim e que acontecem como têm que acontecer, por razões muito intrincadas e complexas relacionadas com esta enorme teia de interações que rege o universo. Sendo assim, por mais que alguém se esforce, é impossível apreendê-las e retê-las.

Mas Tempo tem também um lado muito benevolente. É por meio de sua ação que a maior parte do sofrimento humano transforma-se em mera lembrança e é pela graça de suas mãos que uma enorme gama de problemas acaba se resolvendo de uma forma bastante natural e quase milagrosa. Tempo é curativo, eficiente e aliviador. Basta ter paciência, o que, entretanto, não parece ser muito fácil.

Em meio a dores e inquietações, o homem tem pressa em entender o que com ele se passa. Quer saber porque algo aconteceu ou deixou de acontecer, principalmente quando o resultado esperado não é atingido. Quer saber porque caiu, perdeu, fracassou, faliu, foi traído, foi trocado, foi ofendido, foi magoado, foi agredido, foi desrespeitado. Ingenuamente, procura conselhos e respostas imediatas. Ele ignora que a compreensão exata dos acontecimentos depende do Tempo. Após repetidas experiências, deveria ter a humildade de aceitar este postulado universal e simplesmente saber esperar.

Tempo também foi indagado sobre estas questões e sobre o funcionamento deste mecanismo. Ele ilustrou da seguinte maneira: “Imagine que você estivesse observando um enorme tabuleiro. Você concorda que seria possível, ao observador, explicar e prever as interações, os encontros e as quedas de cada um dos pequenos seres que caminham sobre a superfície? Ter esta visão é como conhecer o passado, o presente e o futuro”.

Nós, seres humanos mortais, não possuímos este dom, pois fazemos parte deste tabuleiro. Nossa visão é muito parcial e limitada e não conseguimos olhar em todas as direções com o alcance necessário. Somos tão minúsculos em meio a aquela teia que nunca chegaremos a compreender todas as causas, consequências e condições.

Há, porém, a possibilidade de algumas respostas. Aguardando o necessário, poderemos olhar para trás e então, já com um certo distanciamento, conseguiremos ver com alguma clareza os caminhos percorridos até um determinado resultado. Esta é a bondade do Tempo. Se ele não nos confere a dádiva de antever o futuro, ao menos nos concede meios de compreender o passado e, consequentemente, o presente.

Se hoje você tem questões não respondidas, aguarde mais um pouco. Seja gentil com você mesma e com o Tempo. Não se agrida, não se torture, não se esgote. As respostas possíveis virão quando você tiver caminhado mais além e quando houver subido a montanha que lhe fará enxergar melhor os rastros da sua existência. E quando você tiver alcançado o topo de sua fé e da sua alegria, o Tempo, em sua ação que nunca falha, trará a cura e erguerá, com suas asas, o véu de muitos mistérios.

(Texto originariamente publicado em 21/05/12. Foto: Walldevil)

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NAS ASAS DA PAIXÃO

Se existe um assunto acertado em termos de satisfazer a curiosidade feminina, este tema é a paixão. Acho normal. As mulheres são seres apaixonados em sua essência e falar sobre a paixão é falar sobre algo que lhes é muito familiar e muito antigo. É claro que cada uma de nós tem a sua própria história. Mas é certo também que a primeira paixão nasceu muito cedo, quando éramos apenas meninas. Naquela época, a paixão que sentíamos dentro de nós provocava a mesma sensação que correr em meio a bosques floridos e caçar borboletas. Acreditávamos piamente que a paixão era capaz de transportar os nossos corpos franzinos e as nossas almas espevitadas para muito além do horizonte. O simples ato de observar o ser amado, mesmo que você estivesse escondida atrás de uma árvore a milhares de quilômetros de distância, era como respirar o mais inebriante perfume de sândalo. E um mero olhar do seu principezinho já era suficiente para você se sentir flutuando em um tapete mágico a milhas e milhas de altitude. E, o melhor: sem nunca sentir vertigens ou medo de cair.

Então você virou moça. Neste momento, apenas contemplar o ser amado já não era mais suficiente. Foi quando surgiram, então, as suas primeiras interações, ainda muito desajeitadas e tímidas. O rubor na face era natural. Nenhuma de nós precisava de maquiagem. O que precisávamos, isso sim, era ensaiar palavras na frente do espelho e descobrir em nós mesmas uma coragem assustadoramente poderosa para estabelecer alguma espécie de contato. Como a grande maioria das primeiras paixões, a minha também foi platônica e não correspondida. Agora eu sentia, pela primeira vez, a flecha atravessando o meu coração. Eu nunca havia sentido uma dor assim. Meu grande amigo era meu diário, cuja capa cor-de-rosa era fechada com uma chavezinha dourada. E era para ele que eu dirigia as minhas preces, fazia as minhas promessas e contava os meus progressos na arte da sedução. Meu diário nunca me recriminou. Calado, aceitou tudo aquilo que eu impus a ele com minha letra perfeita e também tudo aquilo que eu impus a mim.

Então virei mulher. Costumo ser muito franca e aberta com relação aos meus sentimentos e à minha intimidade. Sinceramente, não tenho problema algum em falar sobre a minha vida. Mas existe uma única coisa que às vezes ainda me faz corar. Incomoda-me um pouco lembrar de todas as coisas insanas e sem sentido que, ao longo da minha existência, eu fiz em nome do que eu achava que era amor. Fosse amor de verdade, não teria sido assim. Os atos impensados, a fragilidade, o destempero e o desequilíbrio são típicos, na verdade, de um estado de paixão. Se eu tivesse sabido antes, teria feito diferente. Mas eu estava equivocada. Para mim, tudo aquilo era amor. E se até Fernando Pessoa teria dito que “tudo vale a pena quando a alma não é pequena”, quem era eu para discutir?

As paixões não fizeram estragos significativos na minha vida, mas deixaram marcas indeléveis no meu ser. Valeram a pena no momento em que existiram, mas tenho que admitir que o preço pago foi altíssimo em termos de auto-respeito, de auto-controle e de auto-estima. Nos momentos de paixão, sufoquei minha vontade de voar e, voluntariamente, amarrei pesos nos meus pés. Minhas asas se ressentiram e eu não me importei. Em parte, abri mão de mim mesma e corri o risco de que elas se atrofiassem para sempre.

Felizmente, a natureza possui uma inacreditável capacidade auto-curativa e minhas asas se recuperaram e me remeteram àquela época em que eu bebia água nas nascentes e colocava margaridas nos cabelos.  Mas tudo agora era diferente. Com o tempo, veio a consciência de que eram os meus próprios pés que me moviam e que, para voar de verdade, eu teria que exercitar as minhas asas. E comecei a tatear esse terreno, experimentando aqui e acolá as minhas novas descobertas. Demorei muito, mas muito mesmo, para ter a segurança de me elevar um pouco além. Eu sabia que um vento mais forte poderia facilmente me derrubar.

Mas eu não desisti. E, aos poucos, eu fui mudando como um pássaro migratório, que intuitivamente sabe para onde se encaminhar. Em parte, tenho saudade das piruetas, das manobras radicais e até mesmo dos pousos forçados. Mas, em parte, prefiro seguir em velocidade de cruzeiro, observando meu caminho com atenção e sabendo distinguir quem são os predadores e quem são os companheiros.

Ninguém pode dizer que não beberá da água de um determinado rio. Principalmente, se você se vir sozinha em meio a um deserto árido. Sendo assim, hoje eu prefiro abastecer os meus próprios cântaros e minimizar os meus riscos. Pode parecer covardia. Mas pode ser também que a isso se chame paz. Os voos serenos têm valido muito a pena em minha vida e têm me poupado muita energia. Certa ou errada, com razão ou sem razão, acredito que, desta forma, poderei ir ainda mais longe. E ter muitas outras histórias e finais felizes para contar.

(Texto publicado originariamente em 15/05/12. Foto: Rosie Hardy)

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NASCIMENTOS E RENASCIMENTOS

No momento do parto nascem dois seres: o bebê e a mãe. E, a partir de então, o choro de um é o choro do outro por toda a eternidade. Antes do nascimento, a mãe tecnicamente não existe. Ela nasce somente quando seu filho chega ao mundo e, por esse motivo, a gestação deve ser considerada uma maravilhosa fase da vida porque permite o nascimento de ao menos duas pessoas. O filho e a mãe, naquele momento, nada sabem sobre os meios de enfrentar o desafio de vivenciarem suas novas experiências.

Por mais vivida que uma mulher possa ser, ela é um recém-nascido quando se trata do instante em que ela ouve os sons do seu filho pela primeira vez. Uma mulher só conhece os sentimentos reais da maternidade quando se torna mãe. É claro que uma mulher que não tem filhos compreende, empiricamente, tais dores e prazeres. Porque cada mulher é, antes de tudo, também uma filha. Mas a essência das razões para cada ato afeto àquela condição é privativa e exclusiva daquela que gerou um filho.

De uma certa forma, quando nasce a mãe morre algo na mulher. A definição não é precisa, mas o que eu estou tentando dizer é que as alterações das prioridades ocorrem de modo tão profundo que parte da qualidade feminina não pode ser exercida. Enquanto um filho é dependente de sua mãe não existe campo para o exercício integral dos atributos do feminino. Mas as experiências que decorrem da maternidade são tão ricas e inebriantes que a mulher sequer considera que tal modificação, em outro contexto, poderia ser considerada uma perda. Para a mãe, todos os atos em prol de seu filho são ganhos inquestionavelmente significativos. E, assim, a mãe prossegue na saga de criar o seu filho, de amá-lo, honrá-lo e ensinar a ele tudo o que for da esfera de seu conhecimento.

Mas a vida não é um vetor voltado para uma única direção. A mãe também aprende com seu filho e, nesse sentido, dele também é filha. E esta concessão, porque aparentemente surpreendente, aumenta ainda mais o sentimento de admiração que uma mãe pode ter por seu filho. De uma certa maneira, o filho já se fez e, graças ao que ele pôde aprender por si próprio, em tenra idade já é capaz de ensinar.

O tempo passa e o filho cresce e haverá um momento em que ele não mais será dependente de sua mãe. Este momento não é necessariamente definido pela independência econômica ou por conta da superação de conhecimento do filho em relação à sua mãe. Reduzir esta premissa aos pobres parâmetros da capacidade financeira e do aprendizado é menosprezar a complexidade desta relação. Não sei definir o momento em que isso acontece, nem como filha, nem como mãe. Mas é inequívoco que certos distanciamentos, em alguns momentos da vida, produzem profundo impacto, tanto na mãe quanto em seu filho.

De uma certa forma, há um tempo em que o filho passa a fazer as coisas por si mesmo e a presença física da mãe já não é uma necessidade estrutural e orgânica. Não se pode dizer que isso seja bom ou ruim. É apenas a constatação do fluxo natural da vida, que deve ser aceito com a naturalidade de quem compreende as quatro estações do ano. Este ciclo existe e pouco importa que você ame o verão e deteste o inverno. Sua opinião não é relevante para as leis da natureza.

Mas tudo o que muda e morre propicia o renascimento. E este renascimento não significa a morte da mãe. Ao contrário, ele exprime a beleza da transformação da paisagem do tempo. As flores nascem viçosas após o derretimento da neve.

Neste Dia das Mães, eu desejo a todas as mães do mundo e a mim mesma a compreensão das estações da vida. Desejo que cada uma das mães bem conheça estes ciclos de nascimento e de renascimento. Desejo que, em gratidão à dádiva desta qualidade, cada mãe bem exerça o papel de geradora de filho, de mãe e de mulher. Porque dar à luz um filho é dar à luz a sua própria pessoa. E desejo, por fim, que cada mãe tenha em mente que as alternâncias das estações representam, em última instância, o desenho da própria eternidade.

(Texto publicado originariamente em 12/05/12. Foto: Wallpaperfo).

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O BEM, O MAL E O FIM

Muitas vezes já me peguei pensando nas minhas atitudes sobre a face da Terra. Embora eu tenha uma quantidade bastante razoável de defeitos, é claro que não me considero uma pessoa ruim ou má. Mas também disso não tenho certeza, pois tenho que contar com a possibilidade de que minha própria falta de modéstia, que é tecnicamente um pecado capital, tenha me levado a essa otimista conclusão. Mas esse auto-juízo não é privilégio meu. Em um julgamento superficial e sem qualquer base científica ou estatística, posso afirmar que a  grande maioria das pessoas se considera bastante aceitável sob a ótica ética e moral. E quando você vai a fundo para investigar as razões desta avaliação benevolente, acaba encontrando sempre uma resposta muito parecida: “não faço mal a ninguém”.

Não tenho grande conhecimento sobre a evolução do estágio psíquico, emocional e espiritual do homem através dos tempos. Mas qualquer um que tenha frequentado a escola pode identificar, sem nenhuma dificuldade, inúmeros exemplos de atrocidades cometidas ao longo da história da humanidade desde eras imemoriais. Sendo assim, embora não se possa afirmar com certeza que o homem de hoje seja dotado de bondade relevante, também não se pode asseverar que os espécimes anteriores tenham sido melhores que os atuais. E postos assim o postulado e a conclusão, o que se pode perceber é que, ressalvadas algumas poucas variáveis, o homem tem se mantido o mesmo em termos de caridade e benevolência, em comportamento absolutamente deficitário com relação aos mais elementares paradigmas filosóficos.

Dante Alighieri nasceu em Florença, Itália, no ano de 1265. Morreu cinquenta e seis anos depois e, desde então, tem sido considerado o maior poeta da língua italiana. Sua principal obra foi a famosíssima “Divina Comédia”, consistente em um poema escrito em dialeto local com estrutura épica e propósitos éticos. Divide-se em três partes, tais sejam o Inferno, o Paraíso e o Purgatório. A composição formal da obra baseia-se na simbologia do número três. Há três personagens principais: Dante, Beatriz e Virgílio, que representam, respectivamente, o homem, a fé e a razão. Cada estrofe tem três versos e cada uma de suas partes contém 33 cantos. E cada um dos três lugares são compostos por nove círculos, em uma fórmula matemática auto-explicativa.

A obra é complexa e parte de sua beleza se perde se você não tiver familiaridade com o idioma original. Não li a “Comédia” por inteiro, mas ouvi falar de um trecho que me chamou muito a atenção. Explico antes como é estruturado o Inferno. Formado, como dito, por nove círculos concêntricos, cada um destes trata de uma categoria de pecados e de pecadores. Isto é, dependendo da natureza do pecado, o morto permanece em um determinado círculo. Por exemplo, se você for um herege, seu lugar é no Sexto Círculo, conhecido como Cidade de Dite. Se você, diferentemente, for um traidor, será acomodado no Nono Círculo, também nominado Lago Cocite, sendo que, a depender da qualidade do traído (parente, pátria, hóspede, mestre ou rei), você deverá enfrentar uma Esfera específica.

Pois bem. A par destes Nove Círculos que bem descrevem a metodologia e critério do destino destas almas, o autor dedicou-se a explicar o que ele chamou de “Vestíbulo do Inferno” ou “Ante-Inferno”. Em sua odisséia subterrânea, os personagens deparam-se com almas desesperadas, correndo de um lado para outro. E indagando o Mestre, este respondeu ao interlocutor que aquele local era destinado às almas que não podiam ir nem para o Paraíso e nem para o Inferno. Elas não eram ruins o suficiente para sofrerem em algum dos Nove Círculos após transporem o Portal. Por outro lado, também nada haviam feito de bom que ora justificasse o seu ingresso no Paraíso. Faz sentido. E faz mais sentido ainda pensar que, mesmo já nesta complicada situação, estas almas também merecessem sua própria punição. Para Dante, as escolhas na vida determinam recompensas, positivas ou negativas. Ademais, quem se recusa a escolher é porque escolheu própria indecisão. E porque esta pessoa escolheu a indecisão deve ser tida por covarde. E porque é considerada covarde deve pagar por isso, correndo em filas atrás de uma bandeira e sendo perseguida por vespas e moscões. Assim funciona a morte naquele patamar.

Não sei o significado da bandeira e muito menos dos insetos no contexto da obra. De toda forma, parece intuitivo concluir desta passagem que não fazer o mal em nossas vidas não é lá grande coisa se você sempre tem a opção de praticar o bem. É quase como dizer que não fazer o mal não representa mérito algum, já que é mera obrigação.

Refletindo sobre isso, passei a reavaliar os meus conceitos sobre mim mesma. Tive de recuar em minha presunção de que ser inofensiva era o que me bastava. E vou ter que me dedicar a examinar esta questão da caridade com um pouco mais de atenção.

Como todos sabem, o bem e o mal possuem consequências. Eu mesma sou da opinião de que “aqui se faz, aqui se paga”. Porém, o que desejo destacar é que a apatia, a inação e a indecisão também pagam o seu preço, quer você seja religioso ou não. Pois assim como a maldade e a bondade podem encontrar eco nesta nossa vida cotidiana, a indiferença também há de produzir resultados em nossa existência.

Sendo assim, termino esta postagem como um conselho, que, embora não pedido, ouso dar à leitora, quiçá como uma tentativa de primeiro ato de bondade: além de não fazermos o mal, que tal tentarmos fazer o bem?

(Texto publicado originariamente em 11/05/12. Foto: Favim).

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NA TERRA DAS FADAS

Esta semana ganhei um presente muito especial do meu pai. Um livrinho sobre mitologia. Na verdade, ele é uma espécie de dicionário em que você pode encontrar, pelo nome, os principais personagens das maravilhosas histórias lendárias que se desenvolveram no berço da cultura romana, grega, egípcia, nórdica e celta. Imediatamente fui em busca de meu próprio nome e pude reviver, com emoção, aquilo que eu já sabia mas que se encontrava adormecido em mim há muitos e muitos anos: os fantásticos relatos sobre Rei Arthur e os Cavaleiros da Távola Redonda.

De acordo com histórias medievais e romances contados através dos séculos, Arthur teria comandado, juntamente com seus fiéis cavaleiros, a defesa contra os invasores saxões chegados à Grã-Bretanha no início do século VI. E ele teria, também, sido aconselhado por Merlin, um sábio mago que, segundo tais relatos, conhecia todos os segredos do céu e da terra, da vida e da morte, dos homens e dos deuses. E muito embora tenha sido atribuída a Merlin a fama de feiticeiro, contam os entendidos que ele, na verdade, pretendia apenas assegurar a paz entre os povos. As histórias arturianas são tão ricas em detalhes que muitos acreditam que se trata de relatos absolutamente verídicos.

Dizem também estas histórias que o famoso círculo de pedras britânico teria sido construído por Merlin, o qual teria providenciado, no ano 300 A.C, o seu transporte, pelo ar, desde o País de Gales. Mas se Merlin era dotado de poderes especiais, tinha também seu lado humano. E foi assim que ele teria se apaixonado por Viviane, também conhecida como “A Senhora do Lago”. E tamanha teria sido tal paixão que Merlin, cego de encantamento, teria entregue à sua amada todos os segredos que ele, até então, guardava com absoluta exclusividade. Viviane era filha de Diana, a deusa dos bosques, e irmã mais velha de Igraine, mãe de Arthur. E foi nesta condição de tia que Viviane teria concedido a Arthur a famosa Excalibur. Este importante ato teria acontecido em Avalon, sagrada ilha bretã regida por sacerdotisas. A famosa Fada Morgana era meia-irmã de Arthur e teria sido treinada por Viviane para sucedê-la em sua missão de assegurar a paz e a sabedoria, tornando-se a nova líder desta terra insular.

Ao que consta, estas narrativas, embora não verdadeiras, guardam estreita relação com as antigas cultura e religião celtas. Historicamente, a expressão “celta” é a designação dada a um conjunto de povos organizados em múltiplas tribos pertencentes à família linguística indo-européia e que se espalhou pela maior parte do oeste da Europa a partir do segundo milênio antes de Cristo. Tal etnia, assim definida como os povos que falavam o idioma celta, transmitiu a sua história através das tradições e do folclore. Pouco se escreveu a respeito e o que se sabe destes grupos deveu-se à mera perpetuação dos costumes.

Os celtas exaltavam a força da Terra e a natureza era considerada a expressão máxima da Deusa-Mãe. Embora a sociedade não fosse rigorosamente matriarcal, as mulheres possuíam grande importância em sua dinâmica e funcionamento, na medida em que a Divindade Superior era um ente feminino. E tanto as forças do Universo regiam suas crenças que os celtas não construíam templos. Suas reverências aconteciam nos bosques para propiciar a adoração aos vários elementos da natureza. Infelizmente, a religião celta perdeu-se no tempo. As reminiscências que ficaram resumem-se basicamente à wicca e suas derivações, as quais ostentam conteúdo pagão e incluem rituais de bruxaria. Seus princípios originais e sua essência primeira não permaneceram.

Em pouco mais de um mês, visitarei a Grã-Bretanha e se eu tiver tempo, visitarei alguns locais importantes da história celta. Pretendo ir a Stonehenge e contemplar de perto esta misteriosa obra. Pretendo comprar alguns livros. Pretendo conversar com as pessoas locais para compreender um pouco melhor estes povos. Com sorte, conseguirei.

É claro que sei que todas estas histórias fantásticas são lendas. Mas, mesmo assim, gosto de pensar que a sacerdotisa-maior de Avalon se chamava Viviane e que foi ela quem, tal como uma fada, entregou a espada mágica para seu sobrinho Arthur. Gosto também de imaginar as aventuras vividas por Merlin e sua amada quando teriam percorrido toda a Europa no dorso de um cavalo. E gosto de reproduzir em minha mente como seriam as visitas às florestas para homenagear a mãe-natureza.

As lendas são maravilhosas e nos fazem sonhar. São estas histórias que fazem a nossa imaginação funcionar e que giram a engrenagem do mundo.  Estas narrativas resgatam a doçura dos antigos tempos e a força de um ser humano impulsionado pela honra e pela coragem. Heróis e princesas fazem falta nos dias de hoje. E por isso mesmo os Contos de Fadas são tão interessantes e fascinantes: eles nos fazem acreditar na existência de um mundo melhor, em que a paz possa reinar.

E, pensando agora, talvez seja a esta a razão pela qual estes relatos místicos ainda existem de forma a sobreviver à própria realidade.

(Texto originariamente publicado em 08/05/12. Foto: Pinterest).

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