Mulheres com Asas

Bons Voos.

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A ÍNDIA, O ABRAÇO E O CHAVEIRO

A primeira vez que estive na Índia foi há exatos cinco anos, em janeiro de 2007. Embora até então eu jamais tivesse frequentado uma única aula de yoga, juntei-me ao grupo de professores do mestre Marcos Rojo, de São Paulo, pessoa por quem nutro grande estima. Eu soube desta jornada por meio de um cartaz aposto no Templo da Monja Coen, que seguiria em viagem como convidada especial. E, assim, fiquei 32 dias naquele país fantástico, atravessando suas terras de norte a sul e, depois, de sul a norte, por todos os meios de transporte que você puder imaginar. Há tanto, mas tanto mesmo, a contar sobre esta viagem que caberia a criação de um blog inteiro dedicado exclusivamente a ela.

No extremo sudoeste do país, fica o Estado de Kerala, banhado pelo Mar da Arábia. E é ali, numa cidadezinha remota, que se localiza o ashram da guru indiana Amma. Amma não se chama Amma. Nasceu Mātā Amritanandamayī Devi, mas, desde cedo, recebeu o codinome que a notabilizou, e que significa “mãe”. Amma é conhecidíssima naquele país e em toda a Ásia e Europa, principalmente por seus projetos humanitários. Ganhou projeção internacional em 2004, ao doar, sozinha, 23 milhões de dólares às vítimas do Tsunami.

Mas o que torna Amma tão famosa é o fato de que milhões de pessoas vão a seu ashram em busca de seu caloroso abraço. Formam-se filas gigantescas de turistas e de devotos para receber esta verdadeira bênção, que sempre vem acompanhada de uma breve prece de conforto ao pé de seu ouvido.

Para melhor organizar aquela multidão de fiéis, os voluntários dividem as pessoas em grandes grupos que serão chamados em uma suposta ordem cronológica de chegada, que não consegui constatar.

Como havia literalmente milhares de pessoas no ashram naquele dia, perdi de vista meus companheiros e acabei sentando no chão, ao lado de lindas meninas indianas, trajadas com impecáveis uniformes britânicos e bindis reluzentes na testa. Uma delas, com cerca de 14 anos, pegou em minha mão e admirou meu anel de strass em formato de coração. Eu estava usando um par de brincos semelhante. E não pensei duas vezes em tirar todas aquelas bijuterias e entregar à simpática garota, que, notoriamente, estava no auge de sua faiscante vaidade adolescente. Ela me agradeceu com um beijo na face.

Cerca de duas horas depois, finalmente chegou minha vez de receber o abraço, que, confesso, muito me emocionou. Impossível não chorar em meio àquela verdadeira catarse.

E, quase em transe, saí do templo à procura dos demais, pois já era quase final da tarde. Depois de mais de uma hora andando de um lado para outro, eu ainda não havia encontrado ninguém, o que me deixou um pouco apreensiva, pois meu hotel, em Cochin, ficava a 140 km ao norte daquele local e não havia transporte público regular.

Qual não foi, então, minha surpresa, quando vi minha nova amiga de olhos amendoados vir correndo em minha direção para me entregar um chaveiro com a foto da Amma, que ela acabara de comprar na lojinha de souvenirs. E, naquele exato momento, ao abraçar a garota, recebi a mais importante lição daquele dia, qual seja o ato de receber, de ser grata, e de dar em retribuição.

O abraço de Amma e suas palavras incompreensíveis foram muito especiais em minha vida. Mas, justiça seja feita, foi aquele chaveirinho que tocou e calou fundo em meu coração, de forma divina e eterna. Obrigada, pequena garota. Não sei seu nome, mas foi por sua causa que voltei à India três anos depois. E  também será em sua homenagem que retornarei tantas vezes quantas forem possíveis àquele santuário de amor.

(Texto originariamente publicado em 02/01/12. Foto: Pinterest).

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O CARROSSEL

Às vezes a vida parece um faz-de-conta enfeitado e colorido. Você vai à bilheteria, compra seu ticket e, deslumbrada, dirige-se ao carrossel. Já de longe você escuta a música, as risadas e um pouco do barulho enferrujado da máquina. Mas quem se importa? É ali mesmo que você decide embarcar. Os cavalinhos são lindos, galopam em perfeita harmonia, e sobem e descem com a precisão da dança da natureza. Há uma longa fila até chegar a sua vez. Mas vale a pena esperar. O dia está frio, mas não chove. Ao contrário, faz um enorme sol amarelo que ilumina aquele brinquedo tal qual um holofote. Além disso, há milhares de luzinhas piscantes em cada um dos mastros. O dossel é dourado e grandioso. O maquinista usa um quepe azul. E agora é a hora da sua diversão. Quem se incomoda com a idade? Há pessoas de todos os tipos esperando a sua vez de brincar. E então você pensa: “por que não?”. E sobe num cavalinho amarelo.
O motor é acionado e você começa a girar, girar… As crianças gritam de alegria e algumas delas carregam um algodão doce cor de rosa na mão. É claro que o brinquedo é lindo. De repente você se inunda com a sensação de fantasia que não sentia desde os oito anos de idade. Na sua frente, talvez passe um filme inteiro da sua vida, mostrando tudo aquilo que aconteceu desde então. Quem já não se sentiu assim?
As lembranças são um sopro de alegria e nos reposicionam ante a realidade. Somos capazes de lembrar das tristezas, mas, miraculosamente, voltamo-nos mesmo para uma sensação de felicidade. A gente começa a pensar naquela época em que parecia não haver problemas e que a parte mais difícil da vida era fazer a lição de casa.
Mas não é assim. Já naqueles tempos, havia dificuldades. E muitas, se você considerar a pouca experiência que você tinha. Não acho que mudou tanto assim. As adversidades vão se alterando na medida do seu crescimento e, de uma certa forma, tudo vai mesmo se tornando mais fácil.
Mas há uma diferença. Hoje não há mais como viver o faz-de-conta. E a vida não é um parque de diversões.
Por alguns minutos, pode parecer inebriante girar nas costas daqueles cavalinhos de madeira, estáticos e inanimados. Mas nossa existência clama mesmo pelo realismo, pelo dinamismo e pela capacidade de realizar. E isto não é necessariamente ruim. Para nosso próprio bem, é bom que saibamos a que viemos e o que nos define neste mundo. Cada uma de nós é tão diferente e complexa, que reduzir os nossos dias ao giro de um carrossel certamente não satisfaz a alma. Ninguém sabe ao certo o que é a alma. Poetas de toda a parte do mundo procuraram defini-la, mas na verdade cada uma de nós tem um conceito muito próprio. Talvez esse conceito não seja racional, mas sensorial. Mas a certeza de saber o que você deve fazer e o reconhecimento daquilo que faz sentido são capazes de satisfazê-la. Você não vê sua própria alma, mas sabe quando ela sorri em sua completude.
No filme da vida, a gente se pergunta o que fez até então. E de repente a alma começa a despertar, satisfeita, quando você assume a consciência de que deu o melhor de si em cada momento. Neste instante, a alma brilha porque sua vida não foi um giro inútil, contemplativo, passivo, mecânico e repetitivo.
O carrossel agora parou e é hora de retornar à realidade. Os medos são sempre tão relevantes. De tudo que a gente sente, parece que o medo é o sentimento que tem maior poder sobre nós. Às vezes preferimos mesmo nos entregar aos rodopios seguros, aos passeios previsíveis, aos percursos conhecidos. E nessas horas a alma chora porque sabe que podemos muito mais do que isso e que viver como um mero passageiro não nos levará a lugar nenhum.
Temos pés, mãos e asas. Podemos fazer muito mais do que simplesmente nos agarrarmos às hastes que cravam aqueles cavalinhos. Não somos pégasos, é verdade. E também não somos aves, não temos asas literais. Mas podemos ir aonde queremos. E não falo sobre atravessar os céus e os oceanos, porque muitas vezes isso é mesmo difícil. Falo, isso sim, de transformar a sua alma em um espaço onde caiba o mundo inteiro e onde não haja limites para a vontade de realizar.
É quase noite e o parque já está fechando. Vamos embora. Em casa pensamos melhor sobre isso. De toda forma, lembre-se: nunca será tarde para decidir como fazer a sua alma se iluminar e brilhar faiscante no meio do jardim.  Como um imponente carrossel.

(Texto originariamente publicado em 03/07/15. Foto: Darya).

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A FLECHA NO CORAÇÃO

“Quando uma estrela fica sem combustível, ela começa a esfriar e a gravidade assume o controle, provocando sua contração. Esta contração aperta os átomos, aproximando-os, e faz a estrela tornar-se novamente mais quente”. Esta afirmação de cunho científico está na página 82 do livro “Uma Nova História do Tempo”, de Stephen Hawking e Leonard Mlodinow. Pela terceira vez recomeço o livro desde o seu prefácio para tentar entender as coisas misteriosas e complexas desta casca de noz. E confesso que, em parte, meus esforços têm se mostrado em vão.
É muito interessante pensar que você se acha razoavelmente inteligente até descobrir que a força da gravidade altera o tempo, em sua essência. Certo. Você pode repetir mil vezes que tudo é relativo e que, se viajar mais rápido que a luz, poderá percorrer o tempo para trás. Ou pode também oferecer-se para pessoalmente testar o paradoxo dos gêmeos numa nave espacial com o bônus, ainda, de voltar mais jovem para a face da Terra. Ou, então, pode solenemente proclamar que tudo é infinito, que o universo não é tridimensional e que o início de tudo decorreu de uma simples explosão.
Muitas destas assertivas eu tenho reproduzido desde sempre. E desde sempre também tenho me perguntado sobre a correção das minhas conclusões. Além disso, parte do que digo sequer faz sentido para mim, o que me põe a duvidar da própria pertinência dos meus questionamentos.
Sinto-me um pouco frustrada porque minha mente não alcança o exato sentido das coisas, nem mesmo após a vagarosa leitura de texto didático por inúmeras vezes. Pode ser também que eu não tenha aptidão para o pensamento abstrato, pois, a despeito das minhas inúmeras tentativas, acabo sempre voltando a aquelas questões primárias que formulei na minha infância, em pouco ou nenhum progresso nas minhas respostas. E ecoa em minha mente: O que havia antes? O que haverá depois? Existe algo que possa ser espacialmente ilimitado? O que é o nada? O que é o eterno? Como vim parar aqui?
Em algum momento da minha vida li que se eu fosse capaz de entender alguns destes mistérios eu poderia ser muito mais feliz. É possível. Certamente a apreensão exata de dilemas bastante complexos tornaria muito mais intuitiva a compreensão dos fatos singelos e cotidianos, sob a acepção de suas razões e de seus por quês.
Alguém então poderia dizer que o entendimento da vida está muito mais inserido nas questões afetas à fé do que nas questões relativas à ciência. Meu pragmatismo, entretanto, insiste em buscar as imediatas e razoáveis explicações racionais para os eventos mais insignificantes da vida.
É do meu feitio, como se diria. Mas, por outro lado, este mesmo pragmatismo me empurra para frente, como que dizendo que não há tempo para abrir o livro pela terceira vez. E eu sigo esta voz. Acabo me impelindo para a frente sem parar para analisar muito do que ocorre em minha vida. Perde-se um pouco, é verdade. Mas ganha-se em tempo e otimização, o que parece lá ter suas vantagens.
Uma antiga lenda fala de um índio que recebeu uma flechada envenenada em seu coração. Indignado, quis saber quem tinha disparado a flecha, a razão para o ataque, o tamanho do arco, a distância do inimigo, a composição do veneno, e outros detalhes que somente os animais da mata poderiam esclarecer. O curandeiro, então, sugeriu que ele primeiro retirasse a flecha do seu peito para, somente depois, continuar com suas reflexões. De fato, a teimosia e a pressa por conhecer todas as respostas certamente o deixariam morrer.
E assim ficamos presas no dilema entre o perguntar ou o prosseguir, em um ciclo que não conduz a um resultado prático satisfatório.
Às vezes simplesmente andamos. Em outras ocasiões, voltamos a aquelas questões antigas e que são paralisantes. Ou então apenas emperramos, tentando entender o significado de algum específico episódio ou as razões pelas quais as coisas são como são.
Falta sabedoria. De minha parte, eu deveria ser prática como o curandeiro sugeriu e arrancar de vez a flecha envenenada do meu coração.
Ocorre que eu consigo entender as inquietações do índio. Como andar pela floresta sem conhecer o inimigo e de ter a certeza de quantos são? Como preparar-se para a defesa sem saber as razões para o ataque? Como municiar-se adequadamente sem inteirar-se do poder de fogo do guerreiro adversário?
As perguntas são pertinentes, por evidente. O problema é que talvez nunca se chegue às respostas corretas, se é que elas existem. Considere, por exemplo, a possibilidade de a flechada ter sido fruto de um mero acidente. Neste caso, não existiriam inimigos e nem confrontos futuros. O índio teria se desgastado inutilmente em tentar encontrar as explicações, que, a rigor, não passam mesmo de suposições.
Então é melhor andar. Porque quando a gente simplesmente para, o combustível vital se esvai, a vida se esfria, as contingências tomam o comando e o corpo se contrai. É assim também com as estrelas, como aprendi e transcrevi no início deste texto, em trecho que, para minha felicidade, compreendi em sua plenitude.
Nas situações extremas, você chega ao seu limite e é necessária significativa pressão decorrente da contração para que você possa se reaquecer. O processo é penoso. O sofrimento é intenso. O esforço é desmedido. E a perda de parte da vitalidade é irrecuperável.
Estou convencida de que a estagnação, ainda que temporária, é sempre prejudicial.
Melhor que se retire logo a flecha do peito para que se inicie a recuperação. É uma questão de prioridade cuidar primeiro do que é essencial, palpável e conhecido. O resto é o resto. Você poderá entender posteriormente, caso exista mesmo algum sentido. Na pior das hipóteses, você tem a eternidade.
E aprenda o que é a resiliência dos corpos, a magnífica capacidade de voltar ao estado anterior após acentuada deformação.
No mais, siga em frente, sempre. Há uma imensa estrada logo ali. E também não há que se enxergar desde logo qual é o ponto de chegada. Ao contrário, basta que se consiga iluminar apenas alguns poucos metros à frente para entender qual é o melhor caminho a seguir.
(Texto originariamente publicado em 04/02/15. Foto: Favim).
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O CRISTAL DESPEDAÇADO

Quando eu era ainda muito pequena, alguém me ensinou o que era um prisma e como ele funcionava. Era um prisma rudimentar, é certo. Mas bastava eu colocar aquele pedaço de vidro sob o sol para ganhar o presente mais lindo da minha vida: uma refinada explosão de cores refletindo por todos os lados. Era como mágica. Era como trazer o arco-íris para dentro de casa, a qualquer hora do dia, em qualquer dia da semana. Quem disse que eu precisava esperar a conjunção sol-chuva para ser muito feliz?

Naquela mesma época eu ganhei um caleidoscópio de presente. E minha vida, que já era boa, agora me parecia completa. A festa de tons, de imagens e de brilhos fazia com que cada nova manhã valesse muito a pena. Meu maravilhoso brinquedo proporcionava o ápice da beleza logo ali, ao alcance dos meus olhos e das minhas mãos. O tempo parecia parar. O silêncio ecoava por toda parte. Todas as histórias do mundo se reduziam a um cenário encantado de belas imagens e de paz.

Até que um dia tudo mudou. Não me lembro bem como foi, mas, devido a uma queda, meu adorado cristal se partiu. Aquele pedaço de vidro que outrora me trouxera tamanha felicidade havia agora se transformado em milhares de cacos inúteis. E o resultado disso foi que eu nunca mais pude ter o meu próprio arco-íris. De repente, o mundo havia se transformado em um filme em preto e branco. Agora tudo o que me restava era esperar a rara garoa nos dias ensolarados. Ou o improvável sol amarelo nos dias de tempestades. A felicidade já não dependia de mim. Nunca mais eu senti que ela estivesse sob meu controle e sob as minhas mãos.

Desafortunadamente, o caleidoscópio desapareceu na mesma época. Não sei se ele se perdeu, ou foi furtado, ou foi parar no fundo de um baú qualquer. O fato é que nunca mais o vi. E nunca mais desfrutei, também, daquela maravilhosa orquestra silenciosa de formas harmônicas se movimentando ao rodopio do artefato. Que fase triste. A vida, por que razão seja, tirou de mim, em curto espaço de tempo, meus mais valiosos tesouros. Aqueles cristais encantados foram-se para sempre.

Uns anos depois, quando eu já era mocinha, ganhei um lindo pingente de cristal com areia colorida e logo tratei de atá-lo ao pescoço. É evidente que sua função era outra e que o adorno não me traria  de volta aquele mundo encantado de outrora. Mas ele tinha seu valor. Por alguns anos, minha gota de vidro funcionou como um verdadeiro talismã. E, nos momentos tristes, ela me alegrou porque eu podia me lembrar do cristal da minha infância. Esse berloque também sumiu do nada. Tenho a suspeita que o cordão simplesmente se rompeu. E, mais uma vez, precisei dizer adeus.

Quando adulta, continuei buscando recursos para alegrar o meu mundo. O problema é que, depois de algum tempo, eles simplesmente se esvaíam como fumaça, como se nunca tivessem estado ali.

São mistérios da vida. Desde sempre, presenciei desaparecimentos inexplicáveis e acabei compreendendo que a felicidade não tem vocação para permanecer. Fui surpreendida inúmeras vezes por circunstâncias mais do que improváveis. Estive às voltas com fatos incompreensíveis e com pessoas imprevisíveis. E na singeleza do meu querer, nunca entendi muito bem porque era tão difícil manter o que me encantava, o que era belo, o que me fazia feliz.

Um vidro, quando se parte, é capaz de cortar a carne. E senti essas dores muitas e muitas vezes, dentro e fora de mim. Não é figura de linguagem. É dor verdadeira, física, que pode até ser o resultado da somatização. Mas arde e queima de verdade, como faca encravada no coração.

O cristal é puro. E talvez nunca deixe de ser. Mas pode se despedaçar. E quando isso acontece o seu mundo colorido simplesmente vai embora e deixa para trás a ponta da navalha latejando no peito. A felicidade se esconde e sobra a missão da cura, do entendimento e da compreensão.

Eu não sei se vai ser sempre assim. Mas aprendi a varrer os cacos e a colocar o curativo. Dói por um tempo mas depois vai virando cicatriz. E durante esse período eu simplesmente repouso, mergulho no mundo dos sonhos e busco lá na infância as imagens perdidas do meu mundo mágico. Lembro do que foi a primeira felicidade e de como ela escapou de mim. Às vezes escorre uma lágrima, não de dó, de tristeza, ou de autopiedade. Desce uma lágrima de saudade de tempos longínquos que não podem voltar. Tempos em que um mero raio de sol era capaz de iluminar toda uma existência. Tempos em que a dança das cores não precisava de melodia para poder me encantar. Tempos em que o arco-íris morava em casa e brilhava forte dentro de mim. Tempos em que o cristal não parecia tão frágil e nem prestes a se quebrar. Tempos em que ainda não era necessário juntar os pedaços de nada, porque tudo parecia inteiro, perfeito, eterno.

(texto originariamente publicado em 20/05/14. Foto: Emily Soto)

AS LINHAS DA VIDA

Uma vida pode ter várias formas, formatos, cursos, vetores, sentidos. E, por isso mesmo,  é engraçado que a gente sempre imagine o caminho da vida como uma linha horizontal traçada da esquerda para a direita. Não sei se é convenção nossa ou imagem de caráter universal e inconsciente o fato de que, para nós, a linha da existência seja representada desta maneira. Esta orientação é própria da nossa forma de escrever, o que me faz suspeitar que a lógica do nosso pensamento acompanhe esse mesmo desenho.

Em uma pesquisa superficial no Google, você logo descobre que diferentes escritas são grafadas em diferentes sentidos e direções. Os alfabetos primitivos, por exemplo, podiam ser escritos vertical ou horizontalmente, e, ainda, da esquerda para a direita, da direita para a esquerda, de cima para baixo e de baixo para cima. Já na língua árabe, convencionou-se escrever da direita para a esquerda. Por fim, no idioma chinês e no japonês, a convenção é escrever-se de cima para baixo e da direita para a esquerda da página. Fiquei pensando, assim, se, graficamente, a representação dos fatos da vida para estas outras culturas acompanha a mesma orientação dos escritos de seus respectivos povos. Não sei dizer.

O fato é que se a gente se apega a esta forma usual, erra feio na representação. Explico. Quero crer que a maioria das pessoas, na infância, estudou a linha do tempo, que começava com a pré-história e terminava com a menção de um fato atual. Critério meramente cronológico. Mais nada. Porque por sobre aquela linha apenas fatos e datas eram representados, desprezando-se toda sorte de incríveis interações, ciclos, retrocessos e saltos no desenvolvimento da civilização. Convenhamos que esta é uma maneira muito rudimentar de explicar a história da humanidade. Da singeleza daquelas informações não é possível compreender-se a complexidade do mundo. Quando muito, a gente aprende a pontuar os eventos em marcos temporais específicos.

De igual maneira, se você vir a sua vida como um simples traçado horizontal pontilhado de datas e fatos, não estará representante com fidelidade o curso da sua existência.

É claro que, do ponto de vista exterior, há ocorrências relevantes a serem anotadas na linha. Quanto a nós, porém, naquilo que diz respeito à nossa mais pura essência, é impossível fazer-se qualquer datação: em raríssimas oportunidades uma pessoa consegue apontar dia, mês e hora para situar uma mudança na alma.

Somos seres tão complexos que nossa metamorfose acontece sem que nos apercebamos. No dia-a-dia da nossa existência apenas vamos vivendo até que um dia a gente percebe que, não se sabe como, algo simplesmente mudou. A gente pode observar que andou muito em pouquíssimo tempo, ou que não andou nada, ou que andou para trás, numa dinâmica aparentemente irracional que desafia o relógio convencional. Às vezes você percebe que está no passado. Ou no futuro. Ou pode estar se movimentando para dentro de si na busca de algo que se perdeu, ou que você jamais teve, mas deseja ardentemente encontrar.

Nossas verdadeiras linhas, assim, não podem ser tidas por retas ou cartesianas. Nosso andar espiritual e mental pode ser sinuoso, senoidal, espiralado, cíclico, ascendente, descendente, reverso. E na verdade a gente não tem muito controle sobre isso. A estrada da vida simplesmente vai se abrindo sozinha, sem sinal ou aviso. É como se uma força impalpável te guiasse pela mão por uma trilha desconhecida e não escolhida. É comum a gente não entender porque a maré puxou para um lado, ou para o outro, ou porque há um verdadeiro cabo de guerra entre o desejo e a realidade.

Eu acho que não importa a sua fé para você entender que estas ocorrências fazem parte do imponderável. Sabemos que devemos fazer a nossa parte, mas esta ação não esgota a equação. Os pontos cegos, o inesperado, o chamado acaso e as coincidências servem, mais do que tudo, para nos desmentir. E provam com maestria que somos poeira no universo. E que apenas oscilamos entre nossos esforços e uma simples lufada de vento. E que nem sempre debater-se nos leva à direção que desejamos.

Acreditar ou não em destino fica a seu exclusivo critério. Mas não há que negar que a precariedade do homem assemelha-se a uma pluma branca que balança em função da intensidade da brisa. Para uma ave ferida é cansativo demais tentar alçar voo. Para uma pessoa minimamente consciente é muito desgastante encarar sua vida como uma complicada operação matemática. Para uma alma doente, querer a qualquer custo pode significar o fim de uma existência.

O tempo passa. As linhas se confundem. Os nós se desfazem. Muito do esforço é em vão. Muito da previsão é bobagem. Sua vida, não importa como ela seja, sempre faz algum sentido. Se não hoje, talvez no dia de amanhã. Ou quando, finalmente, você se dispuser a flutuar.

(Texto originariamente publicado em 25/02/14. Foto: Favim).

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O PRINCÍPIO DOS VASOS NÃO COMUNICANTES

Houve uma época da minha vida em que tudo desmoronou. Incrivelmente, nada parecia funcionar e, olhando para um lado e para o outro, eu não conseguia enxergar nenhuma saída. A única coisa que eu sentia era uma pressão muito forte no meu peito. Meu corpo, para aliviar esta tensão, extravasava todo esse sentimento e toda essa dor na forma de lágrimas. Muitas e muitas lágrimas. Eu devo ter chorado por pelo menos umas quatro semanas ininterruptas. Minha única trégua era o trabalho. Nunca fiz questão de parecer forte aos outros, mas, magicamente, não chorei naquele ambiente.

Era necessário fazer alguma coisa. Mentira. Quem disse que nesse estado de coisas você consegue empreender uma avaliação crítica e elaborar uma estratégia? Eu não pensava em nada, em absolutamente nada. Até que em um certo dia me veio a imagem de um naufrágio. Não me lembro se foi um filme a que assisti, um sonho perturbador ou se foi a minha fértil imaginação. Mas a cena que se formou na minha mente era muito clara.

Eu sempre gostei de água. Quando criança, eu era um verdadeiro peixe. Então, naquele cenário, eu podia me ver muito serena agarrada a um pedaço de madeira em forma de tábua. O mar estava calmo e cálido. Não havia desconforto. Do meu lado direito, o navio afundava e eu não conseguia nem ver e nem ouvir qualquer pessoa. Eu estava literalmente sozinha no meio do oceano. As marolinhas batiam em mim e fiquei feliz por avistar uma ilha não muito longe dali. Era óbvio que eu poderia nadar até lá e esperar por socorro. Comecei a observar melhor a água e percebi que havia objetos flutuando. Muitos deles. Vi algumas latas fechadas de alimentos, garrafinhas de água e também muitas outras coisas inúteis ou imprestáveis. E nesse momento operou-se o milagre do salvamento e da salvação. Eu aprendi a recomeçar. Como eu precisaria nadar até a ilha, tive de escolher muito bem os objetos a serem recolhidos. Sem desespero, examinei um a um, avaliando o que poderia ser útil e o que poderia ser deixado para trás. Não foi difícil levar as coisas selecionadas com o auxílio da minha prancha. E poucos dias após permanecer sozinha na ilha, fui finalmente resgatada em perfeitas condições, físicas e mentais.

Este episódio mudou minha vida. Dele eu tirei a quase totalidade do pouco que sei. Foi com razão e com calma que eu me recuperei. Lembrei-de de novo da minha infância, precisamente da época da escola em que aprendi a fazer gráficos de barras. E desenhei um lindo gráfico na minha cabeça. Cada barrinha representava um setor da minha vida: saúde, filho, família, trabalho, vida social, vida afetiva e outras áreas significativas. E, desde então, todos os dias da minha vida, faço a avaliação do estado de cada um destes segmentos e dedico-me a melhorar a barra que apresenta o menor desempenho. Este método é eficaz e funciona muito bem porque uma barra nunca interfere na outra. Um problema aqui não pode estragar o que está bom por lá. Por que você jogaria um punhado de terra num copo de água cristalina e potável? Não é justo com os outros, com a vida e principalmente com você. Criei este princípio para mim. Lembra-se do princípio de física dos vasos comunicantes? Pois então. A premissa aqui é que este princípio nunca seja aplicado, em nenhuma situação e sem qualquer exceção.

Cada um é um, é verdade. E eu não sou filósofa ou sabida o suficiente para afirmar que o que funciona para mim vai funcionar para todos.

De todo modo, faço um convite a esta experiência. Nas situações extremas, permaneça calma, racional e selecione o que serve e o que não serve. Em seguida, repasse mentalmente seu gráfico pessoal e faça uma avaliação sincera de cada setor. Por fim, dedique-se ao mais vulnerável e lembre-se de preservar as áreas satisfatórias.

Isso é ciência? Não, é puro empirismo. Posso prometer que funciona? Não, por evidente. Mas se não se comprova sua eficiência, também não se demonstra sua inutilidade porque a ausência da prova do acerto não significa, necessariamente, a incorrência em erro. E quanto a isso tenho a mais absoluta certeza. A propósito desta assertiva, posso afirmar que se trata de postulado universal.

(Texto originariamente publicado em 06/12/13. Foto: Maja Topcagic).

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POR QUEM OS SINOS DOBRAM?

Desde adolescente, eu já me interessava por Ernest Hemingway, escritor norte-americano que, aos sessenta e um anos de idade, ceifou a própria vida com um tiro de fuzil. E tanto é assim que, quando pude, visitei sua casa em Key West (EUA) e, anos depois, em Havana (Cuba), onde atualmente funciona um museu.

A morte sempre foi uma constante em sua vida e em sua obra. Seu pai também se suicidou. Nunca se saberá se este tipo de influência é genética, psicológica ou comportamental. De toda forma, não custa mencionar que, certa vez, a mãe do escritor, a dona de casa e professora Grace, enviou-lhe pelo correio a pistola com a qual seu pai dera cabo à sua vida. Também nunca se saberá o que ela quis dizer com isto.

Do ponto de vista de quem vai, não há nada a dizer. Quem de nós poderá afirmar, com toda certeza, o que existe além da fronteira da vida-morte? Quem poderá demonstrar que há paz, ou tormenta, ou apenas um sono profundo e eterno? Quem poderá explicar se há consciência ou não? Ou castigo, ou inferno ou céu? Ou se tirar a própria vida é pecado ou é alívio, ou não é uma coisa e nem outra? Eu não tenho nenhuma resposta para estas perguntas e, sinceramente, também não tenho nenhuma crença precisa a respeito deste específico assunto.

Muito diferente, entretanto, é observar a morte do lado de cá, da perspectiva de quem sobrevive. Sim, digo “sobrevive” porque o despedir da vida nem sempre segue uma ordem previamente determinada. Não existe uma fila com senhas e às vezes a gente tem a impressão de que o critério é meramente aleatório. Aliás, estar vivo nos dias de hoje é quase como jogar com a roleta russa. E digo isso mesmo que você nunca tenha empunhado uma arma. Afinal, se der o azar de você estar em um determinado local e em um determinado momento, poderá acontecer de ser a sua vez, sem qualquer aviso ou preparação. Simples assim. Coisas inexplicáveis que talvez nem a fé consiga justificar.

Não quero falar sobre a dor de perder um ente querido. Este tipo de sentimento vai além do inexprimível e qualquer tentativa de expressá-lo certamente será insuficiente e imprecisa. Por isso, retrocedo alguns passos para falar da morte com distanciamento, sem nenhum envolvimento afetivo e emocional. Faço apenas breve reflexão sobre este fato inexorável da vida.

Uma das principais obras de Hemingway é o famoso romance de 1940 “Por quem os Sinos Dobram” (em inglês: “For Whom the Bell Tolls”), que narra a história de Robert Jordan, um jovem norte-americano das Brigadas Internacionais, o qual, como conhecedor de explosivos, recebeu a missão de mandar para os ares uma determinada ponte, por ocasião de um ataque simultâneo à cidade de Segóvia.

O livro é interessantíssimo, mas menos pela narrativa em si própria do que pela abordagem. O escritor, com maestria, trata soberbamente da condição humana e de sua precariedade. De acordo com relatos, a inspiração veio da obra “Poems on Several Occasions”, do pastor e escritor inglês do século XVI John Donne, o qual, ao criticar os absurdos da guerra, dizia: “quando morre um homem, morremos todos, pois somos parte da humanidade”.

Em tempos de tragédias e de mortes coletivas, compreendemos bem a assertiva, principalmente quando o desaparecimento foge à razão e à razoabilidade. Fatos assim nos tocam mais fundo porque nos colocam em contato com o imponderável, com o inimaginável, com o inadmissível e, acima de tudo, com nossos medos, nossos temores e nossos receios.

A comoção não se dá apenas pelos que se foram, mas também pelos que ficaram ou por aqueles que poderiam ter ido, sem um pingo de nexo lógico palatável.

Daí o choro, a indignação, o luto e a prece prolongada. Em tempos assim, questiona-se a razão de existir e de deixar de existir, de fazer e de deixar de fazer, de viver e de deixar de viver. Apenas um ser humano bastante desconectado de si mesmo não se deixará apanhar por um turbilhão de ideias, de sentimentos e de dores, que culminam na consciente conclusão acerca da impotência do homem em face de muitas questões.

A vida é um sopro, disse certa vez Niemeyer, falecido aos 104 anos de idade. Tenha ou não sido sarcástico, a frase não deixa de ser verdadeira.

Pois quando o vento apaga a chama, não há mais nada a fazer. Apenas acende-se a vela. E reza-se. E, não com muita dificuldade, compreende-se na inteireza a resposta ao título desta postagem, nas palavras do próprio Donne, repetidas séculos depois por Ernest Hemingway: “Nunca procure saber por quem os sinos dobram. Eles dobram por ti”.

(Texto originariamente publicado em 05/02/13. Foto: Sola Rey).

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O QUE EU APRENDI ESSE ANO

O ano não acabou, é verdade. Mas faltam poucos dias. Se não para o fim do mundo, certamente para o final do ano propriamente dito. E é hora de começar a fazer o balanço dos meses, das semanas, dos dias, das horas, dos minutos, dos segundos.

Aprendi muito em cada uma destas frações existenciais do tempo.

A passagem dos meses me mostrou que o fortalecimento pode ser razoavelmente estável. Que nem sempre precisamos ter recaídas de tristeza e de desesperança. Que é possível navegar em águas calmas até o outro lado do oceano.

O transcurso das semanas me ensinou que é viável, sim, planejar e organizar-se. E, acima de tudo, realizar projetos em relativamente curtos períodos de tempo, de forma segura e responsável.

O transcorrer dos dias revelou que em pouquíssimo tempo se constroem amizades e sonhos. Não é necessário muito tempo para estabelecer laços e vislumbrar a concretização de um ideal.

O tique-taque das horas evidenciou que num breve piscar de olhos coisas impensáveis podem acontecer e mudar. Não temos controle sobre quase nada em nossas vidas. E, paradoxalmente, podemos ter integral controle sobre os nossos pensamentos.

O pulso dos minutos contados me contou sobre a possibilidade de cantar a alegria em momentos efêmeros e significativos. Num piscar de olhos, decide-se, avança-se, constrói-se. O relógio não para nunca, nem o físico, nem o biológico, nem o mental, nem o espiritual. O amor não precisa de quase nada para se manifestar. E nem também qualquer outro sentimento. Apreender a vida, reter a emoção, respirar o instante e ouvir o coração são ações que não se condicionam a nada que não seja você mesmo.

E os segundos… Ah! os segundos… São miraculosos, mágicos e reticentes. Explodem dentro de nós como faísca. E ainda assim contêm toda a eternidade. Em um segundo, é possível compreender o significado daquilo que demoramos vidas inteiras para perceber com clareza.

Os segundos são a nossa existência na forma de sua potencialidade máxima.

A dor que dói agora é sempre a mais vigorosa. O amor que se sente agora é sempre o mais poderoso.

Porque é apenas no agora que a mudança se manifesta e que a alma se transforma. O antes e o depois têm pouquíssima importância, pois é sempre no agora que você se emociona, vibra, acredita, sente, suporta, chora, sorri, sofre, recomeça.

É neste exato segundo que você compreende o resultado do ontem, do anteontem e de qualquer  momento do seu passado. E é neste exato segundo que se forma o amanhã, o depois de amanhã e qualquer partícula de um futuro seu.

Você acabou de envelhecer um átimo. E tudo o mais agora já é lembrança, memória, nostalgia. Ou apenas uma visão enevoada e incerta do próximo amanhecer. Porque somos seres livres mas somos também prisioneiros do ciclo interminável de uma inevitável sequência de agoras.

(Texto originariamente publicado em 18/12/12. Foto: Welcome Qatar).

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OS NOSSOS PRIMEIROS DESENHOS

Não posso falar por todas as mulheres do mundo. Falo apenas por mim. A cada ano, quando meu aniversário se aproxima, sinto um certo desconforto, interior e exterior. Não. Na realidade, o desconforto exterior é na verdade interior: é uma certa insatisfação com a imagem que você vê no espelho.

Muito anos se passaram desde que você fez o seu primeiro desenho com lápis de cor. E se você se lembrar direitinho, vai ver que aqueles primeiros rabiscos já eram uma espécie de projeto de vida.

Do quanto me recordo, meus primeiros rascunhos em menina eram casinhas com chaminés fumegantes e cerquinhas brancas repletas de flores. Sempre havia também uma lagoa com alguns patinhos amarelos. Vivi neste cenário um bom par de anos, até que a imagem mudou. Um pouco maior, meus desenhos agora eram estradas cujas bordas convergiam no infinito. Nunca tive uma veia artística muito acurada, mas relembrando aquelas imagens, constato que a perspectiva que eu imprimia era bastante realista: as árvores que ficavam à margem da rodovia iam diminuindo de tamanho em direção ao horizonte. Por fim, um pouco mais mocinha, passei a desenhar ilhas com coqueiros, circundadas de um lindo mar ondulado e com a presença soberana de um enorme sol com raios fulgurantes.

Depois que eu cresci, abandonei esta minha arte. Afundei-me nos livros, em atividades esportivas de mil espécies e nas sapatilhas de ballet. Eu já não tinha tempo para me dedicar a aqueles antigos projetos.

Quando finalmente me tornei adulta, percebi que minha vida não se parecia em nada com aquilo que eu havia idealizado. O casamento desfeito me conferiu a certeza definitiva de que eu jamais iria morar naquela casinha cor de rosa de cuja chaminé saía a fumaça de deliciosos bolinhos de chocolate.

Morar em uma ilha deserta no meio do oceano também estava fora de questão. Meu habitat, agora, era uma cidade cinzenta, poluída e cheia de gente. E, quanto à minha estradinha, também nunca foi muito fácil encontrá-la: meu dia-a-dia passou a ser a correria, os compromissos, o trânsito e a falta de tempo.

Pensando em termos pragmáticos, pode-se concluir que eu não era lá muito feliz. Mas, para ser justa comigo mesma, infeliz eu também nunca fui. Apenas me deixei guiar pelo curso da vida e sempre afirmei a mim mesma que minha vida não tinha sido nem melhor e nem pior do quanto imaginado: apenas diferente.

Um dia, porém, tudo mudou. Não foi um estalo,  um milagre ou uma visão. Foi apenas uma mudança. Tudo mudou como tem de mudar quando você está em processo de amadurecimento. Por acaso uma semente se parece com uma fruta madura?

Do nada, veio a percepção. A felicidade não é algo estático, idealizado e imutável. Tal como ocorreu em nossa infância, nossos desenhos também  continuaram se modificando vida afora. Sendo assim, não há razão para frustrar-se com a não realização daqueles primeiros sonhos. Contabilize quantos projetos e planos você pôs em prática desde então.

Na verdade, tal qual aquele barquinho no mar azul, em nossas vidas fizemos inúmeras correções de velas e lemes que, felizmente, nos conduziram até este ponto.

De igual maneira, a perspectiva da estrada também continua existindo. Será que desde aquela época já não pensávamos, inconscientemente, que aquela era a via da nossa  própria existência?

E a casinha, ah, a casinha. É claro que ela existe dentro de nós, pois é lá que guardamos todos os nossos tesouros mais preciosos.

Pode parecer uma bobagem, mas foi uma descoberta e tanto. Porque se os desenhos não eram mais os mesmos, também não eram lá tão diferentes. A matéria-prima pode ter mudado, assim como as cores dos papéis e das canetas. Isto é fato inexorável.

Mas é também inquestionável que é a mesma mão que ainda segura os pincéis e os lápis de cor. Porque no fundo, embora tenhamos de nos submeter ao implacável passar do tempo, sabemos que somos as donas de  nossos cadernos e de nossas representações. A quem eu, humildemente, poderia chamaria de sonhos.

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(Texto originariamente publicado em 27/11/12. Foto: Emily Soto).

A ONDA E A ALMA

Esta história é verdadeira e aconteceu muitos e muitos anos atrás. Começou num inocente café numa terça-feira qualquer de um longínquo mês de abril. Ainda era cedo, antes das dez horas da manhã, quando minha alma mergulhou no oceano azul do par de olhos mais belos e sinceros que eu conhecera em minha vida. Eu nunca havia sentido tal imensidão. Uma onda me invadiu e me arrebatou. E durante os três anos seguintes eu tive certeza de que aquela onda se chamava amor.

Não, não é isso que você está pensando. É muito mais. Esse amor era cristalino como a água e profundo como o mar. Era assustador e cálido, forte e suave. Suas ondulações eram capazes de me transportar para lugares nunca antes visitados e de me elevar acima da linha do horizonte.

Na maré cheia, ele era vigoroso, produtivo, potente. Na maré vazante, ele era triste, dilacerante, fugidio.

Mas ele sempre esteve ali, nunca me abandonou. Havia adversidades, dificuldades, impossibilidades. Mas amor assim é leal, persistente, eterno. Não morre jamais.

Neste tipo de amor, o corpo pode ser casto porque é a alma que se desnuda. Ele acontece quando você pode ser você mesma e quando sua mente e seu coração simplesmente sabem e compreendem.

O dono dos olhos azuis costumava dizer que amava a minha forma de ser e de pensar. E é fácil entender o por quê. Nós conversávamos sem falar, nos amávamos sem tocar e sonhávamos sem dormir.

Este amor era uma tela branca à frente de um artista. Ali era possível projetar todos os nossos desejos e planos, dos possíveis aos imaginários. A escolha das tintas, das cores, dos pincéis e das paisagens era somente nossa, o que fez deste amor a obra-prima dos seus criadores.

Este amor era cheio de sons, de risos, de cordas e de gaitas escocesas. Músicas que ecoarão por toda a eternidade.

É certo que houve desencontros, erros e lágrimas. Como sempre acontece. Mas isso não tem a menor importância, porque o que hoje se recorda são a paixão, as certezas e as emoções incomparáveis.

Dizem que a parte mais erótica das pessoas é a sua alma. Faz sentido. O verdadeiro valor de uma pessoa está na capacidade de ser vivo, inteiro e autêntico. E nada pode ser mais atraente do que isso. Sherazade, de acordo com os manuscritos das Mil e Uma Noites, em um fragmento do século IX, livrou-se da morte e salvou sua alma pela habilidade de contar histórias, noite após noite. Mesmo aprisionada, ela não se entregou ao rei e ele a libertou.

Muitos anos se passaram. Muitas experiências vieram. Mais de uma vez, os oceanos foram cruzados, para o leste e para o oeste, e nunca mais o vi. Mas sei que ele está bem e é isso o que me importa.

As ondas da vida podem, muitas vezes, te carregar de um lado para o outro. Faz parte da nossa existência terrena, essa sim, frágil e fugaz.

Mas o amor, ah, o amor! Essa espécie de amor não morre simplesmente. Pode transformar-se, amadurecer, mudar de rosto, de corpo, de lugar e de condição. Mas a sua essência é perene como é a alma humana. E é profunda e misteriosa como é o oceano.

Felizes aqueles que, ao menos uma vez em suas vidas, possam se deixar levar pelas correntes e pelos ventos, apenas fechando os seus olhos e entregando-se. É possível que, ao menos por uma fração de segundo, você possa se sentir flutuando e tocando a face da eternidade.

(Texto originariamente publicado em 01/11/12. Foto: HD4Desktop).

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